quarta-feira, 30 de novembro de 2011

NOTAS À MARGEM DE PARTI PRIS



Adormeci a reler Parti Pris, o delicioso livro de entrevistas de Nabokov. Só nas duas primeiras entrevistas, há tanto sumo, é tão inspirador, que ia enchendo um caderno de notas. Aqui vos deixo as mais leves:

Conheço uma excelente loção contra a queda do cabelo que, se bebida, transforma o atrevido em barítono. Mas como o segredo me foi revelado num sonho pelo Nabokov, não passarei o segredo a ninguém por menos de dez mil euros, pagos em cash.


Nunca agitar a garrafa é para mim uma questão de princípio. Desde aquela vez em que inadvertidamente agitei uma ilha e a afundei. Mas não exagerem, o meu cão chamar-se Atlântida não passa de uma coincidência.


Era um detractor de arte tão encarniçado que chamou Mona Lisa a uma filha que nasceu sem três dedos numa mão.


O inglês pedante, o inglês pedófilo, o inglês pedestre: três borboletas que nunca se aproximam do fogo.


Detesto o xadrez, porque não me parece um jogo. No xadrez dificilmente há lugar para a manha ou o bluff. Experimentem fazer bluff numa partida rápida. Eu pelo menos, e pode ser limite meu, nunca descortinei no xadrez essa dimensão. E sem esse jogo de cintura parece-me um exercício de pura lógica que procura neutralizar qualquer modo de relação. Ora, precisamente para me contrariar, escreve Nabokov: «Penso que uma boa combinação deve conter sempre uma boa parte de engano.». Ora bolas, e eu que no xadrez nunca ouvi o trompete, só ouço os fagotes.


Escreve-me o meu amigo Luis Serpa, grande velejador, nos mares e na net, que tem um blog sempre ao relento, aqui para me esclarecer que eu teria escrito a hélice, num qualquer texto, e que entre os marinheiros (logo é certo) é o hélice. Penso que o Nabokov gostaria desta precisão. Mas fica-se espantado: que alucinação colectiva me acometeu para ter visto sempre a hélice onde afinal estava ele, a man, apessoado e ventilado.


«- Em qual língua pensa?
- Eu não penso em nenhuma língua. Penso por imagens. Não creio que as pessoas pensem numa língua particular.»
Tal e qual moi. Não obstante, conheço quem me garanta que pensa com as letrinhas todas, e não tenho maneira de não acreditar. Uma vez tive uma namorada que era professora de ioga e havia passado anos na Índia e que me dizia ser impossível eu passar uma parte do dia sem pensar, em equilíbrio num intervalo. Passei a olhá-la como se ela fosse um tanque soviético sempre a movimentar as lagartas. E vinte anos depois insisto no implausível: ora estou sobre uma linha de suspensão, observando unicamente a imaterialidade das relações, ou estou de escafandro no interior de um fluxo de imagens cuja sucessão me deixa mudo. Olha, uma alga veio-me roubar o campo de visão.


Não consigo comer ostras desde que um amigo, numa piada grosseira, atirou que aquilo lhe parecia o clítoris de Nossa Senhora. Apesar de ser robustamente anti-mariano essa imagem interpõe-se-me sempre e recuo, horrorizado pela crueldade.


«A arte nunca é simples. Quando eu era professor, dava automaticamente uma má nota ao estudante que utilizava esta expressão horrível “simples e sincero” - «Flaubert escrevia num estilo que era sempre simples e sincero» -, pensando fazer assim um grande cumprimento ao escritor ou poeta. Quando riscava a expressão, o que eu fazia pondo uma tal raiva na ponta da caneta que rasgava a folha, o estudante vinha queixar-se, dizendo que era o que os professores lhe haviam ensinado sempre: «A arte é simples, a arte é sincera». Um dia talvez me dedique a escalpelizar a origem desta vulgaridade absurda. Uma mestre-escola empedernida, de Ohio? Um asno progressista de Nova Iorque? Porque, evidentemente, quando ela atinge os picos, a arte é fantasticamente enganadora e complexa.»

terça-feira, 29 de novembro de 2011

VENTO SOBRE OS BONSAIS/ 1

hokusai
                                                                   Este texto 'e para o Virgilio de Lemos, que hoje faz 82 anos

Sempre me atraíram os haikus, mas raras vezes fui capaz de os cometer, acho que por falta de humildade. Escrevo um haiku e não deixo que a redoma do silêncio poise sobre ele, penso de imediato que lhe falta algo, que lhe posso acrescentar x. Em dias de menor orgulho paro num soneto, mais vulgar é estragar um bom haiku (enfim!) com uma baba desmedida.
Angustia-me que me tomem por Satie, que não me acreditem como Rachmaninoff. Uma das lições mais difíceis da vida é a que se estampa no haiku de Buson:

Para cantar
o rouxinol
só entreabre o bico.

Talvez aos oitenta consiga dizer com o Hokusai, mais dez anos e conseguirei desenhar com vida o voo de um moscardo.
Até aí, cagança e manha.
Bom, a traduzi-los não acrescento, só lhes tento infiltrar um nico de aragem. A técnica é só uma: não hesitar, fazê-los de um traço depois de observarmos a linha do cerne. O tsunami não hesita e o voo do moscardo entre duas toranjas também não. O mais garantido para transmitirmos alguma vida ao haiku, a vibração que ele intenta captar, é seguirmos o impulso e fazê-lo brotar de uma vez só, com cada palavra absolutamente encaixada no seu lugar na relação. A mudar uma palavra depois, que seja por questões de textura ou cromatismo, apenas.
Imediatamente a seguir à tradução dos haikus, que me ocuparam, esta manhã, das 10h15 às 11h30, saiu-me este num só talhe:

Tempestade,
encavalitam-se as cerejas
nas orelhas do vento!

O segredo, pois, é não tentear, meditar no que lemos e depois atacarmos de uma vez só, como o funâmbulo o arame. In my opinion.
Bom, e é preciso não sermos choninhas, pelo menos não mais do que eu.
Os primeiros doze haikus são do Basho e os restantes de Yosa Buson.


Vão morrer não tardam
as cigarras; não tiramos daí a ideia
assim que as escutamos.


Um relâmpago:
na obscuridade brilha
o grito da garça-real.


A água é tão fria
que nela não consegue adormecer
a gaivota.


Sobre o toco morto
tamborila o corvo:
entardecer de Outono.


Cabana de pescadores:
misturados aos camarões
luzem grilos.


Que frescor;
os pés no muro
impelem a sesta!


De hábito detestado,
como é belo o corvo
na alba nevada.


Do coração da peónia
sai a abelha,
prenhe de desgosto!


À beira do caminho
florescia uma malva
que o sonso cavalo atraiu.


Um comilão de serpentes,
dizem-me do faisão. Terrível
me parece agora o seu grito.


Se até os javalis
são arrebatados na borrasca
pelas enxurradas de Outono!


Vergado pelas febres, na viagem,
erram os meus sonhos
numa extensa e nua planície.    


Na pele do sino
poisou uma borboleta
que dorme tranquila.


Que alegria
atravessar a vau o ribeiro no Outono,
as sandálias na mão.


Pelos aguaceiros de Abril
vão, cavaqueando,
o chapéu de palha e a sombrinha.


Primavera: ao longo
de todo um dia
a onda cavalga o mar.


Aqui e lá
o fragor das cascatas
torna fresco o rumor da folhagem.


Como é divertido
soltar os pirilampos
debaixo do mosquiteiro.


Para cantar
o rouxinol
só entreabre o bico.


Na brisa da tarde
malha e malha a água
nas patas da garça encarquilhada.



domingo, 27 de novembro de 2011

F'ABULAS RECRIADAS POR UM HERB'IVORO

Em 2009 foi publicado este livro, com xilogravuras de Matias Ntundo e onde recriei vinte fábulas orais recolhidas na zona de Cabo Delgado, em Moçambique. "E uma bela edição da Kapicua. Aqui vos deixo quatro das fábulas do livro:



O COELHO E OS ELEFANTES

 Como eram amigos, o Coe1ho e o Senhor Elefante!
E o Coelho, que era diligente e trabalhador, tinha produzido milhares de abóboras.
Um dia, apareceu na floresta uma manada de familiares do Senhor Elefante, um bando de traquinas e mandriões, e foi ficando. A dado momento o Senhor Elefante já não tinha mais nada para lhes dar e convocou uma reunião de família. Assim que os viu reunidos, inquiriu o Senhor E1efante:
- Como vamos resolver esta falta de mantimentos?
- É simples, roubemos a machamba do Coelho… - adiantou um primo, palitando os dentes.
O E1efante contrapôs:
- Calma, o Coelho é nosso amigo, basta pedir-lhe… ele há-de oferecer-nos algumas abóboras para comermos.
Mas toda a manada, de tromba alçada, se empertigou:
- Era o faltava ir pedir batatinhas ao Coelho, quando temos as abóboras à mão! – diziam em coro. 
 E o Senhor Elefante viu-se obrigado a apoiar os familiares.
Avançaram, pela calada da noite, e saciaram-se.
Porém, o furto passou a ser diário.
Um dia, o Coelho ficou em casa e mandou os filhotes irem colher as abóboras. Os filhos foram lá e surpreenderam os elefantes a surripiar as abóboras.
Os filhos voltaram assustados e contaram ao pai. O Coelho não acreditou nos filhos, afiançou:
- Tenho ir, se não vir não acredito!
E foi. Logo ao chegar, encontrou uma parte da horta toda rapada. O Coelho voltou para casa e comentou:
- Hoje vou à machamba matar os elefantes… - e advertiu os filhotes - vocês não devem vir porque ainda são pequenos e a coisa pode confundir-vos.
Mal chegou à machamba abriu uma abóbora e meteu-se lá dentro.
Os elefantes vieram e come­çaram a engolir as abóboras e o Senhor Elefante engoliu a abóbora onde o Coelho estava escondido.
O Coelho sabendo que estava dentro do Senhor Elefante começou a pular dum 1ado para o outro. Os companheiros ao verem aquele bojo a pulsar e os urros enlouquecidos do Senhor Elefante desataram a fugir, mas o Senhor Elefante, com o Coelho dentro da barriga, não os perdia de vista. E o Senhor Elefante tinha o ar dum comboio furibundo a tocar tambor.
Extenuado de tanto correr e de não conseguir parar, o Senhor Elefante re­solveu matar-se.
Os outros elefantes abriram a barriga do seu familiar e apanharam o Coelho. Agarraram-no e riram a bom rir, de alívio. E a rir sentenciaram:
- Foste então tu que mataste o Senhor Elefante? Agora, vais ter de comer-lhe a carne até às unhas.
- E se não a acabares somos nós quem te matamos e comemos … - vaticinou o que gostava de palitar os dentes, já a pensar na bruta refeição de Coelho condimentado com elefante maduro.
O Coelho espertalhão começou a comer, e comeu, comeu, comeu… sempre que se sentia embatucado o Coelho pensava numa das abóboras que lhe haviam roubado, uma a uma, e vão mil, e vão duas mil quinhentas e vão duas mil e treze e assim as ia contando ao mesmo tempo que mastigava e mastigou e mastigou até à última orelha do elefante...
A manada estava espantada e o elefante do palito dava voltas à cabeça enquanto lhe subia a mostarda ao nariz e a fome lhe dava um cenho carregado de carnívoro.
O Coelho espertalhão lambuzava os dedos e, aproveitando a trégua que lhe deu aquele momento de pasmo da manada, fez um buraco na cabeça do seu mindinho e por aí chupou toda a sua carne, engolindo-se a si mesmo.
Depois caiu para o lado, morto, só pele e osso - deixando os elefantes à fome.  
É o que dá não trabalharem, murmurou, para outra, uma formiga que viu a alma do Coelho subir ao céu.



O CÃO E O OSSO

Andava um Cão aos ziguezagues pelo campo,
À cata de comida. O esganado parecia um pirilampo
Ébrio. A certa altura, viu a carcaça
De uma cobra, vítima de arruaça.

As aves de mapira já quase tinham devorado
A bicha mas ainda sobrava da perna um naco.
O imprevidente Cão afincou-lhe os dentes
E saudou a sua sorte: Uau, que osso tão decente!

E se ainda tem carne! Vou levá-lo
Para casa, para o roer a meu regalo.
A caminho de casa, tinha o cão
Que atravessar um ribeiro brigão.

Sobre um certo cotovelo do curso,
Os homens tinham derrubado, de recurso,
Um velho canhoeiro. ‘É seguro’,
Pensou, ‘e por aqui m’ aventuro!’

Dito e feito. A meio do tronco foi atraído
Por uma sombra na corrente, e, abstraído,
Viu a sua imagem reflectida na água:
‘Quem é aquele madraço, que anda à arrecuas?’.

E reparando então que abocanhava o outro
Um belo naco de carne viu ali agouro
E desatou a salivar. ‘Já sei o que fazer…’
Matutou, ‘Vou rosnar-lhe até ele ceder

E pisgar-se e fico com dois ossos para mim.
E atirou-se para a água, ladrando como o jasmim
Se encontra luar. Só que para no outro escancarar
O medo abriu demais a boca e a perna ficou a boiar

À tona de água, antes de se afogar no escuro.
E, tremelicado de frio, até à margem nadou, inseguro
O nosso cão, sem nenhum osso para matar a fome
E com uma barriga mais lisa que a pedra-pome.



A RAPARIGA E O DRAGÃO

Em tempos que já lá vão, falava-se de uma rapariga que não queria casar com homens vulgares.
No limite sul da povoação da rapariga, havia uma lagoa onde o céu costumava estender as nuvens para secar. Um dia ela foi passear para a sua margem e encontrou um homem-de-água.
Ele gostou dela e ela sentiu que o coração lhe pulsava mais forte. Combinaram casar.
O homem-de-água, para assinalar aquele momento, deu um pente à rapariga. E disse-lhe: 
- A minha vida está ligada à água. Tens que vir cá todos os dias, para conversarmos… Mas antes de chegares tens de pedir licença. Isto é uma regra que não podes quebrar.
A rapariga voltou para casa, numa grande felicidade. No dia seguinte preparou um farnel e levou-o consigo para a lagoa.
- Dá licença, dá licença.
- Vem, passa!
O homem saiu da água, sentaram-se à sombra e ele foi comendo, deliciado. Assim se repetiram os acontecimentos por muitos e muitos dias, até que ela um dia, cansada de pedir licença, se descuidou, chegando de surpresa.
Oh, lá lá! O susto que ela apanhou quando em lugar do homem-de-água encontrou uma enorme serpente “dragão”, com várias cabeças flutuantes sobre as águas, deixou-a muda.
Não se atreveu sequer a aproximar, e recuou em passo apressado.
Quando chegou à casa, contou à família o que viu na lagoa e enfiou-se na cama toda a tremer.
O dragão, desesperado e aborrecido, seguiu com todas as águas para a casa da rapariga. Foi andando, foi andando, deixando charcos e rãs atrás de si. O tempo estava mau, fazia uma ventania danada. Chegando à casa da rapariga, a água subiu, subiu, entrou pelas frinchas e janelas, até ocupar toda a casa e o dragão entrou nela e as suas cabeças assomaram no tecto da casa.
A rapariga chorava baba e ranho, maldizendo a sua imprudência, ainda por cima avisada.
Ia sendo engolida e metade dela já estava nas entranhas do monstro. Mas os irmãos não regatearam acudi-la e pegaram em flechas, zagaias, catanas e machados, inclusive do lume se serviram. E golpearam sem descanso a serpente-dragão, até que a conseguiram matar e salvar a rapariga da larga bocarra.
Desde aquele momento, nunca mais a rapariga ambiciosa quis casar com homem desconhecido.


HISTÓRIA DOS HOMENS

Passeava o intrujas da aldeia, pé-leve, abstraído, no mato
e tropeçou numa ca­beça de pessoa separada de corpo.
O intrujas nem se atrapalhou e perguntou-lhe no acto:
‘Que fazes sozinha? Julgas que isto é de almas um horto?

E – aproveitador - que sabes tu da assembleia que foi marcada
na aldeia comunal? Respondeu-lhe, cambada, a cabeça:
“Malfadado, eis-me morto por causa da minha bo­ca e também
vossa excelência pela boca morrerá, e que disto se não esqueça!”

O intrujas, alvoroçado, correu para o largo da aldeia
onde decorria a assembleia, e gritou: ‘esquecei-a,
à ordem de trabalhos, e vinde ver a cabeça que fala!’. 
Que quer agora este mono, este lastimável gala-gala,

interrogava-se a turba, mas ele não se calou.
As pessoas da aldeia contrapunham que ele mentia.
O intrujas jurou e sugeriu que fossem em sua companhia
ouvir a cabeça que falava, e mais adiantou:

que o régulo levasse catana e que, caso mentisse, o matasse.
Vendo­-o tão convicto, lá o seguiram. E interrogaram a ca­beça
mas a sua boca não se descoseu. Mil vezes repetiram mas o impasse
só se giganteu. Então o régulo, ‘Antes que ele se esqueça!’,

cumpriu o prometido. E deixando em cada bandeja
o mar e o seixo, abalaram. Aí, levantando o queixo
voltou a outra cabeça a falar: ‘Então, Excelência, deposita-me
aqui um beijo, se não morreste por onde morre o peixe!                        

AS CÉLULAS DE AUDEN

auden (1907-1973)

Alguns canteiros colhidos em Marginalia, Shorts e Shorts II, e traduzidos para serem dedicados a Jorge Listopad que fez 90 anos.


Destrói o destino
um ror de espécies: uma só
se compromete a si mesmo.


Poucos conseguem lembrar-se
claramente quando a inocência
tomou subitamente fim,
do momento em que cada um perguntou
pela primeira vez: Fui eu amado?


O amor Verdadeiro
tem vinte por vinte de visão
mas fala como um míope,


Ao homem morto
que nunca fez morrer outros homens
raramente lhe é atribuída uma estátua.


A divisa do tirano:
Tudo o que É Possível
É Necessário!


Os fémures de animais
atribuídos a santos que nunca
existiram, são ainda

mais sagrados que os retratos
de conquistadores que,
infelizmente, existiram.


Os americanos – são como as omoletes:
não há nada de melhor
quando é conseguido.


Ao escutar os Estudos
de Chopin, extasiado
por esse casamento de amor entre Técnica
e a Expressão, ele esquece
que o seu Amor não estava lá.


A esperança de um poeta: ser
como um queijo da serra,
local, mas apreciado algures.


Quem pode imaginar
Calvin, Pascal e Nietzsche
em pimpolhos rosados e rechonchudos?


Privado duma mãe que o ame
Descartes separa
o Espírito da Matéria.


Era o espaço sagrado para
os peregrinos de antigamente, até que o avião
atalhou todas essas enormidades.


Os rios, tarde ou cedo,
atingem todos algum oceano,
e na estação própria também os homens
chegam a um leito de morte, mas
nenhum deles o fez de propósito.


As nossas mesas, as nossas poltronas e canapés
sabem coisas sobre nós
que os nossos amantes ignoram.


O que nós tocamos é sempre
um Outro: eu posso acariciar
a minha perna, não o Eu.


Só a má retórica
pode melhorar o mundo:
ao discurso Verdadeiro, ele está mouco.


Não passamos, todos,
de bugigangas cósmicas, mas nenhum de nós
é inessencial.


Nenhum de nós está tão novo
como dantes. E então?
A amizade não tem idade.


Entre os mamíferos
só o Homem tem orelhas
que não exprimem nenhuma emoção.


Qualquer que seja a sua fé pessoal
todos os poetas, como tal,
são politeístas.


Onde quer que exista uma forte
desigualdade, os Pobres
corrompem os Ricos.

sábado, 26 de novembro de 2011

EXPERIMENTAR O CARREGADOR – A MEDO, ESPERANDO O DERBY

francis bacon    


É sábado. Eis-me entediado como um bode.
Rechina uma ambulância. Duas. O céu
de um azul esmaltado sobre vidro ulcera
as pálpebras, como se feito de translúcidas
escamas de gala-gala. A beleza disto
só a adivinha quem viu e reconhece no lagarto
a glote de Deus. Ao fundo, a baía reparte-se em ínsuas,
penínsulas, em bandos de flamingos que voltejam
ao redor de carcomidas chaminés de tijoleira gris.
Sento-me na varanda, puxo de um cigarro,
de um maço que um amigo esqueceu,
acendo-o, entediado de morte, preso ao desejo
de que um arame farpado me solte um a um
nos pulmões os alvéolos da morte, que tétricas
imagens, recrimino-me, numa segunda passa
funda. Nada do efeito de Apolo III a levantar
voo num leve enjoo, como quando era miúdo
e fumar era a mais insurrecta polpa
inadiável. Passa uma terceira ambulância,
está um dia de massacres, a rua está cheia
de castanhos como diz a minha filha,
pela manhã, em sorvos de leite,
antes de ir para a escola, amor,
trazes-me um copo de vinho?
Um petroleiro rasga a baía
como uma fita vermelha. Chega de cores,
que saudades de Évora, reencarnasse Leonardo
no século XX e só pintaria panejamentos
brancos, uma por outra nódoa
de cereja nos tecidos. Não me apetece ler
e temo que o novo carregador por diferença
de amperes me lixe o computador antes do fim
do poema, talvez seja esta a vera morte ao sol,
sem sinos que dobrem por ti, por inércia,
tédio, uma morte por delicadeza,
por extrema delicadeza, como diria o Rimbaud,
compassiva e de perna aberta diante
do ecrã no retardado desejo de esterilizar,
de apagar o mais secreto gume da infância.
O teu avô funileiro havia de gostar desta desordem,
tantos à nora, quantos saberão ler, interrogas
olhando a mole do telescópico nono andar,
e, merda, faz um desurbano sentido a questão,
aqui, 30 séculos depois depois de Toth, o deus
egípcio ter inventado a escrita. É tramado.
Acendes um novo cigarro - trazes-me a garrafa?  
Logo é o Benfica-Sporting, que ganhe o leão
e que o Pimentel faça hart-trick, só para
lhe voltarem alguns cabelos negros às cãs.
Que melancolia espúria, suspiro, saudoso
de comer os frutos de uma certa árvore,
de ser uma traça no cortinado da presença,
mortificado como a espessura da manga
que ouve a rasgadura do pedúnculo.