terça-feira, 30 de abril de 2013

CONVERSAS EM FAMÍLIA 3/ ADENDA

  
 Ontem a misantropa Joana Emídio Marques apresentou o livro da Ralina, Manucure.
Desempenhou-se com a presciência de quem nasceu para comer conquilhas mas não para autopsiá-las, deixando intacto o seu sabor. Maior sabedoria não há.
Estiveram bem um para a outra, o livro da Ralina, giro, desopilante, com electrocussões inside, e o texto da Joana, que lhe pontilha as linhas de contorno, mantendo-o livre.
Lia o texto da Joana e soltou-se-me esta ínsua:
 
 AS LÁGRIMAS DE JOANA
 
O coração procura debalde o anel.
De balde lhe tira o unto
Antes de o ver,
Invisível como no primeiro dia.
Lá fora, um grilo canta,
De bronze – diria a outra.
Empolga-a a manucure,
No aluvião da carne.
De chávena em chávena, galinha o põe.
 
 
Do que nos valem as casas de banho e as estantes que repousam em frente. Levanto-me à noite para dar vazão à tagarelice do corpo e como sempre pego num livro ao acaso, para o ocaso sentado. Calhou o Mito de Sísifo, de Camus.
Abro-o, na desordem do sono, e leio this;
«… eis a estranheza: darmo-nos conta de que o mundo é «espesso», entrever a que ponto uma pedra é estranha, nos é irredutível, com que intensidade a natureza, uma paisagem, nos pode negar. No fundo de toda a beleza jaz qualquer coisa de inumano, e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos de árvores, eis que nesse minuto perdem o sentido ilusório de que os revestíamos, agora mais longínquos, agora mais longínquos do que um paraíso perdido. A hostilidade primitiva do mundo, através de milhões de anos, regressa até nós. Durante um segundo deixamos de compreender esse mundo, visto que durante séculos só entendemos as figuras e os desenhos que lá púnhamos antecipadamente, e que de hoje em diante só nos faltam as forças para utilizar tal artifício. O mundo foge-nos, porque se transforma nele próprio. Esses cenários mascarados pelo hábito tornam-se aquilo que são. Afastam-se de nós.  
(…) Chego finalmente à morte e ao sentimento que dela possuímos. Sobre isso, tudo foi dito e é uma questão de decência evitar o patético. Nunca, porém, nos espantaremos suficiente com o facto de toda a gente viver como se «ninguém soubesse». É que na realidade não há experiência da morte.»
 Eis porque «o realismo» é uma treta.
 
 
 
 
 

CONVERSAS EM FAMÍLIA 3/ NA RESSACA DO REAL MADRID QUE REALIDADE NOS ACODE?

 

 Quando há uns meses encetei uma resposta a Manuel de Freitas, devido à sua resenha ao meu ensaio Respiro, escrevi-me com uma escritora portuguesa de primeira água e que me merece todo o respeito e quando lhe disse que andava em polémica com o Freitas ela perguntou-me «quem é?». O desconhecimento dela, que não era simulado, fez-me rir às gargalhadas, dele, de mim, de nós os dois, da importância que concedemos à nossa opinião…Digamos que foi uma «intromissão da realidade» sobre o nosso caricato orgulho, uma pontada de ar sobre um pequeno lume.
E a coisa morreu para mim ali.
Mas havia duas ou três questões a esclarecer e que me parecem importantes, e por isso, passado uns meses, resolvi repegar no assunto até como forma de ensaiar esboços que depois desenvolverei.
A primeira é sobre o famigerado “realismo”. A segunda será sobre se há ou não uma geração que tenha surgido na net e nos blogues – a terceira é surpresa. Vamos então à primeira:

  

Quando Barthes nota, numa asserção famosa, que “na página, a merda não fede!” abre uma clivagem em cujo impasse se abismam muitas profissões de fé realistas.

E afigura-se-me que só um intratável despudor nos pode levar a reivindicar a pertença a um território (em exclusividade) e, pior ainda, no solo movediço do que seja o “realismo”, posto a realidade caprichar em situar-se sucessivamente à nossa frente, em nosso redor, atrás de nós, não como algo dado e conformado à nossa grelha momentânea de leitura mas como uma espécie de buraco no saber. Podemos sondar a medida do buraco com que a nossa mente a delimita mas não conhecê-la.

Isto é o que Badiou diz da nossa relação com a verdade, mas parece-me ser similar à nossa dificuldade com a realidade.

 

Convém, previamente, lembrar duas coisas: o reparo que Humpty Dumpty fez à Alice, “não me interessa o que tu dizes, mas quem manda no que tu dizes!”, deve ser uma fonte de auto-vigilância contínua, seja qual for o território poético ou estético a que queiramos adicionar a nossa crença, cientes de que seja qual for o estilo que experimentemos não escapamos à suspeita de que raramente mandamos no que exprimimos.

Depois, dizer, “a realidade”, é algo insipidamente genérico e só a ocorrência do indeterminado – o acontecimento que curto-circuita os seus predicados consensuais – lhe abre um sulco e lhe confere um sentido, que reordena a espaços a pontuação dos seus elementos e articula a sua “natureza”.

Porque a natureza não passa do modo como protocolámos a nossa relação com o mundo. Por exemplo, o realismo - em terras africanas, onde a erosão material, física, humana e social, é de mil por cento de aceleração em relação à verificável na Europa - não admite os mesmos contornos, escala, e procedimentos narrativos que são de uso na Europa. O realismo aqui é mais trágico e, por compensação, perpassa-o um suplemento mágico, que se sobrepõe ao quotidiano. Bastou mudar de geografia. Isto é uma coisa tangível, não se trata de uma hipótese.

Ou seja, dificilmente não está a realidade exterior articulada com as condições para o processo de a lermos, com o trajecto da nossa implicação nela.

Deste modo, caucionar uma referência tutelar é, por conseguinte, uma alucinação consentida e ao dizermos “o realismo” definimos apenas uma das cinquenta formas de decoração que, segundo o hinduismo, o culminam – estabelecemos a propriedade de um protocolo.

Nelson Goodman há muito esclareceu: i) as realidades não são a realidade; ii) há uma necessidade de rebatermos incansavelmente a naturalidade do signo.

 

Talvez haja, isso sim, e disso não se fala, dimensões exotéricas e esotéricas da arte, no contexto de uma tradição ou género – como acontece nas religiões – que condicionam o seu “fazer mundo”.

 

Entretanto, acredite-se no que se quiser: na “pureza em arte”, no “ascético jejum da metáfora”, no “primado do referencial”, no primado da representação sobre a expressão: porém, se não houver um elo que permita fundir uma “escrita realista” com a totalidade da experiência que desconforma a realidade, então é melhor reconhecer que no seu seio a própria discursividade se estrutura por géneros, sem que se seja legítimo descortinar aí a supremacia do “western” sobre o “thrilher”, do “sujo” sobre o “puro” - e aceitar nas suas margens o diverso, outros olhares.

A haver um realismo terá de ser trans, como o praticam um Ashbery ou um John Berger, ou como foi sendo o de Carlos Oliveira – que talvez franzissem o nariz ao epíteto porque a pluralidade não necessita de fórmulas redutoras. 

Talvez a esfera da “nova austeridade”, do “sentido comum”, do “novo realismo”, como se lhe queira chamar, tenha estado menos infiltrado pela “pureza” dos princípios do que por aquilo a que Karl Mannheim chamou outrora “a influência da concorrência no domínio do intelectual”.
O que, se dá uma legitimidade sociológica à actuação da constelação dominante em que se converte cada nova geração, ao mesmo tempo a tira do sério - ficam os seus arautos parecidos aos náufragos que creem poder ditar as suas condições ao mar.

 
 
Vale a pena transcrever este trecho de Robert Calasso, sobre Mallarmé: «Nunca dar o objecto mas sim a ressonância do objecto. Porquê esta obsessão? Muitos leitores recentes julgaram entender que neste preceito mallarmeniano está implícita uma redução do mundo à palavra, com a evidente consequência da plena auto-referencialidade e auto-suficiência verbal. Mas não se trata disso: pelo contrário, essa posição empobreceria e tornaria vã a operação oculta que ali tem lugar.
O pressuposto desta interpretação é o mesmo postulado que rege em boa parte o nosso mundo, que o ajuda a funcionar, mas que ao mesmo tempo o torna inepto para acolher uma boa parte do essencial. Na sua forma mais concisa, tal postulado declara que o pensamento é linguagem. Mas acontece que nós não pensamos por palavras. Pensamos às vezes em palavras. As palavras são arquipélagos flutuantes e esporádicos. A mente é o mar. Reconhecer na mente este mar parece algo proibido, que as ortodoxias vigentes, nas suas diversas versões, científicas ou só commonsensical, evitam quase por instinto. Mas radica aqui, precisamente, a bifurcação essencial. É aqui que se decide em que direcção se moverá o conhecimento.» (sublinhado meu)
Extraordinária intuição.
O «mar» é apenas outra forma de lembrar que nós não observamos o mundo de fora, brotamos do seu remoinho. A mente é o mar que rodeia o remoinho. O que Foucault intuira com o seu «campo epistemológico».
Lendo uma parte significativa da produção poética contemporânea, em Portugal, fico com a sensação de que há uma quantidade excessiva de gente para quem a mente, apesar do autor se afirmar apegado a uma órbitra referencial, é unicamente linguagem, e se arma de uma aversão pânica por quanto seja elipse, sugestão, gesto, sombra, contraponto com o «off», deslocação da metáfora, silêncio e profundidade. O ror de pessoas que acusa um «horror vacui» é impressionante. Afanosamente agarra-se à cápsula das palavras e, protegida por uma armação de proposições, tenta aplanar o espaço e o tempo até à extensão lisa, com as dobras do raciocínio a multiplicarem-se num mero coleccionismo.
Como em Hamlet.
Shakespeare, nesta peça, multiplica os espelhos, as simetrias, as comparações. Hamlet sente-se um “príncipe de palha”, que vale dez por cento de Fortinbras, nutrindo do mesmo sentimento de Claúdio, seu tio e novo rei da Dinamarca, em relação ao irmão a quem usurpou o trono e a mulher.
Ambos – Hamlet e Claúdio - acedem à sua realidade como a um décor esburacado pela ausência dos princípios. Ambos imagens desfocadas, aparências de um ideal que o destino refractou numa «metade pior», fantasmática.
«Vou arrastar estas vísceras para o quarto ao lado», atira Hamlet à mãe, depois de acusá-la de ter menos memória e vergonha que uma besta irracional.
E, contudo, o pendor para o raciocínio do príncipe é uma armadilha. Mesmo quando se interroga se deve “como uma puta”, descarregar o seu coração pelas palavras, o seu diagnóstico depende delas, gralha com pilhas duracel: words, words, words.
Hamlet adivinha em Fortinbras o seu avatar sublime mas, ao olhar para tudo segundo o ponto de vista da doença, a sua consciência torna-se, no dizer de Northrop Frye, «um princípio de morte, um recuo diante do acto», brotando-lhe as palavras como metástases indefinidas da identidade.
Em Hamlet os problemas nunca deixam de ser levantados mas mil alçapões mentais impossibilitam a sua resolução, e não podia ser doutro modo: na óptica do virtual o real não passa de vestígio – é um cadáver de referência. Compreende-se que esta peça seja, segundo Fry, a mais claustrofóbica das peças e um lugar onde corre uma tragédia sem a lebre da catarse.
Para Hamlet, os seus conflitos devém “imagens de repertório”. Porque em Hamlet pensar é um gadget. Aqui temos uma das características daquilo com que se confunde hoje “o realismo”: a frivolidade de pensar que recobrimos a realidade opinando sem cessar sobre ela…
Julgamos que face ao «complexo de Hamlet» que invadiu muita da poesia de predominância referencial, em Portugal, seria útil lembrar as razões do menor apreço de Wittgenstein pelo bardo inglês. Para Wittgenstein a soberania e a singularidade manipuladoras que vicejam na habilidade verbal de Shakespeare geram uma significação meramente «fenoménica».
E a simples fenomalidade não é fiel à realidade da vida.
Parece-me um juízo excessivo – que serve para Hamlet e Iago, por exemplo, mas não para muitas outras personagens shakespearianas - mas não deixamos de encontrar neste alerta estranhas ressonâncias com o panorama da literatura actual.
Hamlet ejecta (não emite) as palavras como se fossem “vírus” (e daqui o escândalo do corpo, a culpabilidade do sexo) e estamos sempre a ver a acção do seu próprio cérebro, a sua refracção instantânea e sem profundidade. Germina, inapelável diante duma aflitiva impossibilidade de catarse.
Confiemos: «La poésie ne cesse de faire allusion à ce qui nous échappe au langage, à ce qui le travesse et le dépasse» (Michel Camus). O que não tem nada a ver, desenganem-se, com inefáveis. Acho que pouco se tem reflectido sobre este aviso de Mallarmé: Ali, onde quer que seja, negar o indizível, que mente!”. Trata-se antes, por conseguinte, de lembrar que a materialidade dos actos, de que as palavras fazem parte, está mais nas relações, na “invisibilidade” das permutas, do que na objectividade dos factos, naquilo que é relatável à vista desarmada…

A “visão” da realidade, a havê-la, brota de um acto. E a duplificação de escrever pode engolfar-se na sua matéria se a mão, movida por alguma cegueira, se entrosar nela, fazendo transparecer a dinâmica relacional da vida.
O que pode ser captado de diversas formas e também e até num modo realista, como neste extraordinário poema de Philip Larkin (poeta que não é da minha cabeceira, embora alguns poemas seus sim):

 
VENTO NUPCIAL

 
O vento soprou sem parar no dia do meu casamento.
E a minha noite de núpcias foi a noite do vendaval;                                 
A porta do estábulo batia, batia tanto,
Que ele teve de ir fechá-la. Deixou-me
Estonteada à luz da vela, a ouvir bater a chuva;
Olhava a imagem do meu rosto no castiçal entrançado,
Sem nada ver. Quando ele se voltou e disse
Que lhe pareceram inquietos os cavalos fiquei triste
Por faltar naquela noite a homens ou animais
A felicidade que eu tinha.

 
                                         Agora já de dia,
Ao sol tudo são novelos emaranhados pelo vento.
Ele saiu para ir ver das inundações e eu
Levo um balde amolgado ao galinheiro,
Espalho o milho e fico a olhar. Vejo o vento
A vergastar nuvens e florestas, a sacudir-me
O avental e a roupa pendurada na corda de secar.
Mas como contas dum rosário desfiadas entre os dedos
A representação de ti no vento perpassa tudo o que faço –
Obsessivamente. Conseguirei de novo dormir
Com esta manhã perpétua partilhando a minha cama?
Poderá a própria morte drenar
Estes novos lagos de prazer, concluir
O nosso ajoelhar como gado junto a águas generosas?

                                  (trad. de Maria Teresa Guerreiro)

 
Creio (hoje, amanhã não sei) que o núcleo do poema está no que sublinhei. O resto é a extraordinária mise en scéne com que o autor mete tudo em relação, e nos faz ver o vento que tudo interpenetra e contamina - sem afinal tornar passageiro o sentimento. É esse contraste que magnifica o poema. Porém o que consagra este poema não é o facto do seu conteúdo remeter-nos para um mundo referencial, comum a todos, o que importa nele é a sua realização verbal, que uma situação humana se traduza com uma inigual plasticidade expressiva, e ao mesmo tempo tão justa, sem uma palavra a mais, sem um juízo…     

 
A grande questão, para mim, não está na maior ou menor medida de mimesis que o poema contenha mas nesta formulação de Salah Stétié: «O testemunho na circunstância, digo, na poesia, não é feito senão de palavras e é esta mesma a sua principal fragilidade, aos olhos daqueles, os mais numerosos, para quem a palavra é uma forma melhorada do nada. Para os outros, entre os quais alguns poetas que nós colocamos no topo da nossa estima, a palavra é uma forma, penosamente diminuída, da totalidade pressentida». (L’interdit, 93, José Corti)
Para quem considera a palavra «uma forma melhorada do nada» a poesia aparenta-se à decoração ou, nos casos mais ‘sérios’, a uma ourivesaria com um ofício expresso em medidas mensuráveis. Daí que tão facilmente se caia na tentação de definir parâmetros, ou a pressa com que se confunde realismo com um género previamente convencionado.
Na verdade, nunca pode haver “um retorno ao realismo”, sem se cair na literatice, dado que a nossa ancoragem na “realidade” pode, se tivermos a energia e a “habilidade” para isso, quanto muito abrir poros onde o não-poético abra janelas para uma nova sensibilidade expressiva mais coincidente com a realidade pressentida, mas este movimento para «o fora», para a totalidade, não pode ter estilos pré-definidos. Por isso diziam os chineses, escreve Kenneth White, que para captar a verdadeira poesia é preciso encontrar-se face a face com um homem vivendo a três mil quilómetros de si. Aquele que nos desampara totalmente as marcas de reconhecimento.   
Daí que talvez, para mim, o maior realista do século XX se chame Henri Michaux.

Segue-se igualmente que não me admita como poeta “a quem se consente”.
Só a minha solidão e a sua zona de laminação me guiam: não porque entenda a arte e a poesia como espaço sacrificial mas porque no limite há uma longitude de destino que me desobstrui – dom que é gratuito mas exige um preço a que não quero nem posso furtar-me.
Sob risco de tudo se tornar decoro e venalidade.
Eu meti-me a dez mil quilómetros. E se a espaços reencontrei a poesia, temo, por vezes perder a memória, atolar-me no desprendimento que convoquei.
Mas o melhor de tudo foi ter descoberto nesse desprendimento que há princípios mas não O princípio. Quando queremos carregar com a bossa d’ O princípio – o “realismo”, por exemplo - ficamos como Diógenes, no seu tonel, condicionados pelo mundo que procuramos negar.
O que não quer dizer que não exista a fidelidade, aos princípios. Mas isso é já outra discussão.

 

 

DUAS ENTRADAS PARA O PURGATÓRIO

Decidi ler em voz alta com a Luna, de 9 anos, O Diário de um Banana/ A última gota, terceiro volume da série, e ao fim de 50 páginas estava absolutamente agoniado. Acho que somos pais de uma irresponsabilidade absoluta ao deixar que esta série medíocre inunde como um quiasma a percepção das crianças sobre o mundo.
O Greg é o anti-Mafalda e a exasperante adaptação ao princípio da realidade, pior, é o desejo dela.
Nas histórias de fadas havia sempre um castelo que estava encantado durante cem anos e que abria e revivescia quando alguém prenunciava a palavra decisiva – e toda a existência, o olhar sobre as coisas, mudava nesse instante.
Quando eu lia o Príncipe Valente, o caudal contemplativo pausava o ritmo da acção, que era repleta de perigos, armadilhas e prodígios, mas que levava o herói a condutas permeadas de valores e do sentimento de que vida é uma conquista indissociável do sentimento de partilha e da necessidade de superação. Nada era inexorável e irreversível – dependia do esforço e da dedicação dos protagonistas.
A Mafalda era o aprendizado da crítica nas relaçãos interpessoais e a desmontagem ideológica no quotidiano, e recebíamos isto com 10 anos, 11.
O Banana é o elogio da cobardia, da resignação, da sacanagem, do esquema, da trivialidade, do humor rasteiro de um mongo. O Greg é um cabrãozinho tão satisfeito com a sua absoluta disfunção que nem a roer as unhas é bom. Faz lembrar um palestiniano cujo único sonho fosse varrer bem as escadas de um “falcão” israelita. Tudo isto disfarçado com um tom paródico, que bebe na auto-ilusão da personagem: “bom, o problema é que não é fácil para mim pensar em formas de me melhorar porque já sou, basicamente, uma das melhores pessoas que conheço!”. O melhor que se consegue aqui é deste calibre: «Felizmente a Mãe não falou do meu boletim de notas durante o jantar. E, quando a Avó disse que precisava de sair para ir ao bingo, fui com ela. Fugir ao Pai não foi o ÚNICO motivo para ir ao bingo com a Avó. Também fui porque precisava de uma forma garantida de ganhar dinheiro».
Humor perfeitamente construído e um herói realisticamente construído…” escreveu-se no The New York Times, sobre este Greg, que é a mais medíocre das criaturas e faz da sua pequenez, do seu mínimo esforço, da sua esperteza de manga d’alpaca modelos para a vida.  Bardamerda.
Já vendeu 325 000 exemplares em Portugal. E nós alheamo-nos ou distraidamente (sem lermos) achamos graça porque é o anti-herói, etc., as tretas do relativismo. Renovo o bardamerda.
Pior. Descobri que somos governados por fãs do Greg Heffley, não só no governo, mas também na oposição. Que o mundinho português está cheio de Bananas para quem o Greg é um ídolo.
No outro dia ouvi no Ziguezague, o programa para as crianças na RTP, o folião do animador incitar as crianças a um trabalho criativo. E dizia: “ Então, que esperas para começar? Não vai ser uma obra-prima, mas não faz mal…!” Faz mal e muito e nós é que desaprendemios de acreditar e nivelamos tudo por baixo.
Tão por baixo que até a gala de anos do Ziguezague, este fim-de-semana, apesar de tudo, foi mais inventiva do que a miserável gala dos 50 anos da RTP, há umas semanas, escrita e conduzida pelo inefável La Feria. O que até é lógico, porque a perpetuação da pueralização redunda na idiotia.
 
 
Fui hoje tratar do DIRE (BI para estrangeitos em Moçambique). Mais uma sangria – 400 euros anuais moem no “capital” de um professor universitário. Mas pela primeira vez foi um processo simples, sem complicações. Mercê de estar casado com uma moçambicana. Dantes, já estava casado mas não tinha “o papel” – e foi o inferno. Começo a desconfiar que a minha ida para o Céu, directamente, por não ter os pecados do peculato, da usura, da ganância, da avarícia, do adultério (nem esse, Senhor!), da pedofilia, da soberba, de alguma excelsa perversidade, etc., não está segura. Que não basta ser boa pessoa, e terei de me casar com a Igreja. Porra, vou procurar saber os regulamentos da entrada no Purgatório.
 
 

segunda-feira, 29 de abril de 2013

DESTRAMBELHO, DE AMIGO



                                                            saudek: a plácida fantasia

Depois de uma hora a julgar que me debatia à entrada duma carruagem do metro em Tóquio, com a mole humana a acotovelar-me, a pontapear-me, a esburacar-me com soslaios assestados na ovelha branca, a passar-me o ranho para debaixo do sovaco, a estreitar-me costelas e o puro encaixe de Camões, entre a aorta e o que se irrita à sua direita, se for a febre muita e a razão nenhuma; depois de vazado o meu suor em tanto músculo alheio, de ter respirado as axilas que o diabo amassou, de ter acudido com a mão no alto, cinco vezes por afligido estertor, oitenta por pensar ter sido o meu nome pronunciado, enquanto o fuzilão de um cinto se espetava nas minhas costas, percebi então que estava num cartório moçambicano esperando pela entrega do reconhecimento de três assinaturas, e que aquele apinhamento, tal agonia, eram normais, eu é que estava mal habituado. E assim que me resignei ouvi o meu nome.
Saí para a rua extenuado por dois meses, sentei-me num tasco, pedi uma Laurentina e escrevi esta

 CANTIGA DE AMIGO PRÓ FB

 Não há como não julgar
Que a coisa seja pessoal,
A morte usa o nosso Visa
Não aceita um remoque
Uma distracção, um suborno -
E o diabo deu de frosque!

Não há como não adivinhar
Que a coisa é pessoal,
O amor estoira-nos o Visa
Depena-nos mais que o Sisa,
Nem aceita um adiamento
- E a diaba deu de frosque!

O bosque é, à uma, um caos.
Às duas melhora, mas, em meio,
Nele perdemos a placidez da aurora.
Na da infância já nem se fala,
E levou consigo a mínima noção
Do que seja lucro, a penhora,
A magra vantagem do musgo
Que seca na pedra.

Poeta sou, e suponho-o pouco
Para afastar a pedra nos rins,
Do coração o xchopela
Da decepção, e do conhecimento
O ranço agudo. Defenestram-se
 Flamingos naquela capela!

Que me suportem os amigos!

Não há como não julgar
Não há como não adivinhar
O bosque é, à uma, um caos.
Poeta sou, e suponho-o pouco!

Que me desinfestem os amigos!

QUEM PROTEGE OS NOSSOS SONHOS?

                                                                  robert doisneau


E mais não é preciso dizer:

Aprendi, nesse inverno,
o livro, mais do que o desenho,
protege o nosso sonho.

 Quem o escreve é o João Miguel (Fernandes Jorge), num dos poemas iniciais de O Regresso dos Remadores.
Quase no termo do livro leio:

Aquilo que
distingue a palavra ave da palavra pássaro.

E isto me basta.
Na ave pressinto os universais, na palavra pássaro diviso os singulares: e deste trânsito, do abstracto para o particular, se perfaz esta poesia tão repleta de hiatos, lapsos, elipses e pormenores. Por isso a sua densidade neo-platónica é perfurada pelo quotidiano, pela contingência.

Na primeira citação encontro algo que me agrada imensamente em João Miguel e que torna o seu lugar um poiso onde sereno sempre: o poeta nunca se esquece da extrema vulnerabilidade da vida e das paixões humanas, ao ponto de reservar para a leitura esse único porto seguro onde se protegem os sonhos.  A escolha do verbo aqui é importantíssima: trata-se de os proteger, não de expor, desbaratar, vulgarizar os sonhos. Essa é a triste escolha dos políticos e da arte de massas. A poesia reserva-se ao direito de não gastar o raro, protegendo-o da usura comum. Por isso será sempre ambivalente, mais visando a concretude das imagens que o realismo (há uma estúpida confusão em torno disto), um modo de deslocalizar a ordem no múltiplo:
Encarregado de velar o trabalho dos mortos
estava entre as crianças perdido
de aventura e ciúmes.   

 


domingo, 28 de abril de 2013

CADERNO DE ABRIL, MISCELÂNIA

                                                                      FOTO DE VITOR CID


Na entrada 162 de Pensar de Vergílio Ferreira, um livro que o meu amigo Helder Moura Pereira me enviou e que, definitivamente, é um livro para além de qualquer adjectivo, lê-se:
«-Quando é que arranca para escrever um livro?
- Quando atingir um ponto em que não seja eu a escrevê-lo, mas ele a mim.»
Não podia ser mais exacto. No meu caso. Eu escuso de forçar as coisas, não pega se ainda não está no ponto de me dominar. Por isso escrevo e leio várias coisas ao mesmo tempo, só uma das leituras me impregna, pois os livros também não se entregam em qualquer momento, e na escrita vou pondo o pé, simultaneamente, em várias torrentes, à espera que uma delas me apanhe e domine, conquistando a primazia, que digo, respirando em meu lugar.
Depois é o face a face com aquela inteligência não circunscrita que à minha frente, no ecrã, vai estruturando o texto e disseminando as suas linhas de força.
Eu colaboro com o texto depois, e às vezes até lhe imponho decisões erradas, ou uma ordenação consentânea, mas a energia é ele quem me empresta.
Nem a reconstrução do real pode ter outra motivação senão a que lhe é inerente, embora precise de um agente de fora, o vento, a temperatura, um acidente, o escritor, para fazer adoçar a polpa, mas é isso que somos: agentes secretos metidos em sarilhos que não dominam.

 
André Maurois conta que Valéry lhe disse “um dia que Shakespeare se tornou ilustre por ter tido a ideia, na aparência temerária, de fazer recitar por actores, no momento mais trágicos dos seus dramas, páginas inteiras de Montaigne. Aconteceu, diz Valéry, que aquele público gostava dos discursos morais”. É tão injusto como bem apanhado.


Num velho caderno que esteve perdido durante anos debaixo do frigorífico (como lá foi ele parar?) encontro um sketch que escrevi, esquecido de todo, que parte da seguinte premissa: uma agência de casamentos em Maputo, de negras com brancos (italianos,de preferência) que só tem albinos na sua agenda. Isto só tem graça em Maputo, mas aqui pode ter muita graça.

 
Meiguice é quando a mamã rata cria o gatinho.

 
Noutra página do mesmo caderno encontro esta nota: “o violino de manteiga”. Lembro-me ainda que isto se associava a Mozart mas já não sei como.

 
Por incrível que nos pareça, o sistema do medievo Dante era afinal muito mais aliciante que o grotesco aparato com que o mercado de massas nos impinge um turismo das emoções.
O conceito dantesco do homem como ser necessitado de uma metamorfose para adquirir no outro mundo uma forma definitiva e eterna, dava uma plasticidade transitiva à espécie humana.
Isto clarifica que todo o poema de Dante seja impregnado pela ideia de transformação. Nascia-se com uma forma para devirmos outra, como as crisálidas devém borboletas. O objectivo estava à nossa frente, e tudo podia acontecer. O ladrão Vanni Fucci, por exemplo, ao ser picado por uma serpente, converteu-se num monte de cinza; os luxuriosos tornaram-se estorninhos; os gulosos uivavam como cães; os suicidas em árvores; mas estes eram exemplos dados por Dante, cabia ao leitor agir no sentido de determinar o seu futuro avatar – o que releva é que a vida se desdobrava numa crença na capacidade de transformação.  
It´s wonderful, Não? Com a sociedade de massas, pelo contrário, somos conformados na origem, formatados por estereótipos que nos condicionam para determinados gostos e respostas, sendo-nos imprimida um tipo de personalidade consumista. Nela, o que importa não é aquilo em que nos transformamos mas o quanto podemos ser conformados. A pouco e pouco tona-se nítido: havia mais liberdade no medievo.

sábado, 27 de abril de 2013

TERCETOS AO LUME

Acontece que por vezes quando passamos um livro nosso a alguém que apreciamos muito acabamos por reler o livro, na tentativa de adivinhar o olhar do outro, porque cada um de nós lerá o texto de forma diferente. Foi o que me aconteceu com o meu livro de sonetos. Bagagem não Reclamada (no prelo), do qual acabei por extrair estes tercetos, muitos remontados, mexidos em relação que está no livro. Aqui ficam:
 
 
               é extraordinário
como o mar neste poema
destelha o firmamento.
 
 
Os olhos crescem a pino
à medida que o farol se afoga,
numa muda expectativa.
 
 
As nuvens tangem violáceas o mar.
As gaivotas não perfilham estes tons.
Pelo menos, agora não.
 
 
Deixou de estar cingida a veia.
Esburacados pelas cápsulas vivas de Deus
sai-nos tão caro a asa como a obscuridade.
 
 
o silêncio entra e rouba primeiro os vínculos
e depois a prata. «Transforma-se o amador
na coisa amada?» Onde se lê coração ler errata.
 
 
Eu que não fui donzela, ave ou eucalipto,
sequer a surda sarda de Empédocles,
                            fui a Greta de Heraclito.
 
 
É inútil dizer que não: Deus soprou-me o sangue
pela casa. Mas não estou só. Desde Baudelaire
que os anjos  derramam vinho sobre a mesa.
 
 
                   No labirinto da pele
veia que se deite logo arrefece
se outro coração não lhe deita a mão.
 
 
Secreto condomínio, o de cada veia
no seu galho. E grave: com um nome
morto que assobia dentro em ti.
 
 
A vida a soldo bem nos delata e despeja
asco a asco no couto da manha, pois cego
que não apalpa é cego imaturo,
 
 
Há lá consolo. Mesmo Homero que criou
a telenovela e crivou de rosa as manhãs
e deu nome aos direitos de autor, tem frio.
 
 
Só a ti alarmava a visão do coxo
que atravessa gota a gota a ínsua
das horas?
 
 
em ti era normal, o outono quebrava-te as mãos
pelos pulsos e amareleciam, irreplicáveis.
Mas pela primeira vez não se segue o armistício.
 
 
Outras não rolarão fácilmente pelo parapeito
das manhãs: a tua cabeça cabe inteira numa mão
e pende do ramo tenro com que abraças um afligido silêncio.
 
 
Viste um adoloscente amolar a navalha na alma do amigo?
Crescer reclama uma tença ao nome. Deixa, o horror
não invalida os passaportes e a neve chegará, ou o pó.
 
 
Não confies na manhã. Não se pode confiar num garrote
que artéria a artéria nos estanca. Confia mais
no que castiga a noite, na sede refractária aos teus três goles.
 
 
Há trinta anos sem desforra. Adestrado, embrutecido
pelo trabalho de erguer andaimes em torno de um ciclone.
Sem desforra, o medo enverniza as paisagens.
 
 
Acordas enroscado de medo no sofá. Escuro: onde tens a cabeça?
Mantem-na à distância, que chega dos dias aziagos
onde a morte é a cauda do Leviatã rasgando o nevoeiro.
 
 
Palavra que te preexiste, passadiço do olhar de Deus
para os viços internos, e, antes de ti, cacilheiro
do Espírito. Palavra-só-látego do mundo que em ti se desatraca.
 
 
Não contrair ausências,
o espírito de geometria,
a culpa de Caim.
 
 
A criança-pigmento que de longe
te olha enluva
as  tuas  mãos  no nevoeiro.
 
                    
Virá o tempo da penúria, o tempo
que põe o TGV no lume, lapidará
corações e trará o rasgão às sombras.
 
                  
É um homem que se debate, mirrado
como o amendoim intocado. Há muito que nele o silêncio
não está síncrono – a alba restringe o âmbito.
 
 
o tipo que tem na ponta da língua
o instante em que o primeiro osso desata
a carne, supondo que é a sisa.
 
 
Esta branda humildade da despossessão
é o mais próximo da arte. Pena a melanina e ir o grão
ao olho afogar o mar em espasmos milimétricos.
 
 
Até onde enxergo: breu, e no gume
da palavra, persistente, o sangue,
que a vida não sai barata.
 
 
Na infância, a Noite era uma
senhora muito encarquilhada
que varria a luz até adormecer de cansaço.
 
 
Quando eu morri a minha alma foi devolvida,
como a maçã que liberta do pedúnculo
suspende naquele hiato ideia de terra ou de céu.
 
 
Só quando a linguagem flutua sobre o velcro da dúvida
– discreto coração albino – é que percebes a radiação fóssil
Deus que se afasta para que tu sejas luminescente vocação inacabada.
 
 
Um velho tanque, película de água e limos.
A rã salta – splaasch!
Depois, Deus é quem sabe!
 
 
assim pernoita a vida: o alvo crisântemo
acorda a neve. E depois, faz-se fundo
ou a escarpa sobe à boca e brilha – radioso paul.
 
 
Vi, numa fábrica de Seda
em Benares, rostos
que pareciam pétalas sem osso
 
 
o mistério da Seda é a imediata imersão
do tacto no nome de Deus – alastra,
como o leite no chá, de uma vez.
 
 
A Seda é uma chama fria que arranca as mãos
dos enganos. Envolve os cabelos como uma nova aurora
e lava nos  olhos os  quistos  da memória.
 
 
Atroz, a trepadeira da dor. Escava na fronte,
desinforma as precauções. Atroz, como o bico da narceja
que imprime na carne da ameixa certificado de qualidade.
 
 
É assim que vejo a chamada da morte:
uma Seda alumia num átimo as claraboias
interiores, selo lambido por um cego.
 
 
Reluta, a alma. Teme
como a uva ser pisada
em vão.
 
 
diviso a linha de costa e, como Ulisses,
atado ao mastro por uma nesga
de cobardia, renuncio.
 
 
Até onde consigo discernir sobrevém
nele uma torrente onde o tempo, esse furão
despeitoso, se dessedenta.
 
 
O gafanhoto que me devora a alma é mais temente
que o sangue que orvalha a morte – tão demente
e inciso que só uma escassez de pontos luminosos nele frutifica.
 
 
e ele sabia, criatura de escrúpulos,
que sem ela faria do coração
uma taberna de maus  vinhos.
 
 
Gosto da secura dos indigentes, a cismar
nas melhores beatas, do acinte janota com que enrolam as mortalhas,
num renovo: vejo aí as qualidades da terra.
 
 
As palavras usam-me os ossos do crânio como trem
de aterragem. Presas como o grasnar do pato,
da cloaca ao bico - pelo sopro.   
 
 
Porque tudo dá fruto. Sonhei com um país de gagos.
Era o meu. Os gagos nasciam das árvores
e amavam-se lambendo o intervalo das sílabas.
 
 
O mano a mano: eu ergo o poema e Deus fuma-o,
remexe a cinza no seu cinzeiro e sopra-a
sem que a nívea nuvem lhe garrote os olhos
 
 
Remo. Enlaçados ao meu bote, quatro jangadas com espectros.
É um espectáculo inigual. Adiante. O vento sussurra-me que o caminho
é invisível. Remo, na noite simultânea. Até quando? Adiante.
 
 
Um lugar que não desincorpora e que mesmo no colapso
se cola à pele do observador, faz dele o seu arpão:
eis, janelas de um cego, a lídima extensão do poema.
 
 
– quem não viu nunca poderá adivinhá-lo; que se acorda para dentro
na rota do milagre e a escarpa não tem meio, apesar dos fiéis
rogarem em círculo como os cães, apesar do jacente salto cabisbaixo.
 
 
Preocupa-me, sei lá! Em torno
ergue-se a torre aluída e, por lapso,
a língua comeu o gato.
 
 
O vento, afogado
na luz
até ao pescoço,
 
 
                            Por dentro e por fora:
o coração já não é penhor. Depois morre
de pura solidão entre os plagiadores.
 
 
Enruga a pele porque os ossos – como a glicínia
que é só haste ensarilhada em si mesma –
desirmanam em estalidos  vãos?
 
 
Dobra o seu nome na língua: limoeiro depredado
de ossos e vísceras. Doba o seu nome na ave:
gran secreto es el morir.
 
        
                              Ao longe, no relvado, debaixo
dos verdes cinzas das oliveiras, duas gaivotas despedaçavam
um pombo ainda vivo. Um dia de mortes nunca vem só.
 
 
Tens em conta que o suporte da palavra
é a avalancha, que te foi dado nasceres
a meio do aluvião?
 
 
O coração
faz trapézio
no meu corpo.
 
 
ir de cana, pintar o sete, erguer em palafita sobre delgadas patas de aranha
o tabuleiro do medo ou ir-lhe à rata abocanhar o queijo grié
– propósitos que esculpem uma vida na sua jaula.
 
 
O sombrio semeador de escadas sonhava ouvir O Escuro
bramar-lhe ao ouvido. Estava tão alto O Escuro.
Feridas que se coçam até ficarem perfeitas.
 
 
Mas abrir um livro ao acaso e capturar um látego:
uma papoila, uma patada na nuca, os lábios
que respiram contra o muro sem rancor.
 
 
Na lágrima da viúva via-se um velho cisne que tossicava
muito. Ela escamava à bancada, enganchando a unha na guelra. Lembranças
de miúdo,  ainda a alegria trotava no seu pequeno porte exangue.
 
 
estive sempre cego, embutido
na massa da noite como uma passa
nos  restos  de bolo-rei que Deus dá aos corvos.
 
 
      – quem nos atraiu ao ardil de imaginar
que, só quando o poema é diáspora de si, se abrem as  torneiras  do infinito?
Os  desertos crescem e eu, inepto para matar dragões, rezo.
 
 
…………………………Por serem
As  águas  sonâmbulas  voam águias
……………  o vento afasta o ar. 
 
 
Eis um rio que goteja
e se precipita para o alto,
em hastes tenras…
 
 
É que me imagino morto para o mundo, dizia Ponge,
em quem o trânsito de ser cravo sabão, ostra, se tornou natural,
como em mim a atrapalhação de buscar em cada palavra o silêncio do faroleiro.
 
            
Fala-se do Tempo, um crânio que se locomove a vapor
contra a evidência galopante das imagens.
O abismo alça-se, dentro, anterior à carne. Fuck!
 
 
                      cada vez que mata
a Morte reencontra a sua infância,
cada vez que te trespassa alguém tu perdes a tua.
 
 
Há vezes em que só compreendo as palavras e noutras só os pensamentos.
Quando coincidem como dois carris casados pelo ritmo
não sei se sou o tronco do carvalho se a copa se a cotovia que deles se afasta.
 
 
Tabuinhas de ossos e remoinhos profundos fazem cair a carne
nas frinchas. O caos já foi uma região com mapa
quando me assobiou o teu nome.
 
 
Palavras que conversam entre si
como as nuvens e os rios:
o fogo preso com que me laçaste.
 
 
                       este jeito descuidado, algo banana,
que temos de amar no outro a ferida
que o preserva.
 
 
Uma luz caindo como cal sobre os ombros em fuga
– porque só o ovo existe, a galinha é o seu sonho –
conduz-me ao muro dos teus olhos.
 
                                               
Não a poupes, gasta o mais possível a tua morte. Palpa-a,
deixa que radie, e que esbraseie como tudo o que envolve
a pedra: o ar, o pavio da pele, o sangue cujo frémito arboresce a noite;
 
 
Enquanto a luz escavar um túnel na direcção dos crisântemos
que bebem a tua sombra, enquanto acordar ao teu lado
esquecido do alarido na boca do Leviatã, outro fim de mundo não haverá.
 
 
Sem dar azo a mais destrinças,
posta a alma ao lume (bem ou mal passada?),
a treva encarvoa-se de silêncio.
 
 
Esgarça-se a nuvem, é uma questão de sintaxe - sem esta
há lá emoção duradoura!, nem seria a cerejeira reminiscência
nas  costas  da cama que te ouve em blandícias .
 
 
Olá, pai, a coisa está preta e morde e hoje nem toda a beleza
do mundo escapa ao descontentamento. Saudades.
Já viste por aí algum monte de laranjas coberto pela neve?
 
 
Tal como países terceiros resgatam (com que clemência?)
as Soberanas de primeiros e segundos, capacito-me
que de pátria para pária a diferença está na dívida.
 
 
Conheço o mal, é meu vizinho, às  vezes cativa-me
ao espelho e depois  tenho de descolar da imagem
veia por veia, poro por poro, daninho.
 
 
O que não mata engorda, dizia-se na minha meninice
de letra vadia, na infinita batalha entre paisagem e caligrafia.
É de espantar que Mercúrio, tão mais perto do sol, tenha gelo?
 
 
Procura-se leitor que salpique a sua actuação com crisântemos,
em vez de desairoso tropeçar na própria sombra. Procura-se
leitor, que aguente mais que água tónica ou a acédia que atomiza.
 
 
Operamos no mesmo circuito, eu e o leitor,
mas cabe-me o carro sem travões. A frio, imparcialmente,
o leitor exige programa de protecção às testemunhas.