quinta-feira, 28 de novembro de 2013

UM POEMA DE RADOVAN IVSIC E CINCO VARIAÇÕES

miró, que fez várias litografias para Radovan
 
 

OS PASSOS DA MORTE



Nos vagares de um vento lazarento

pelas mais densas florestas

betumadas as raízes numa mão imensa

que pulsa no coração da relva sombria

ao redor da pedra

no topo da surdez dos abismos

na noite anoitecida

pelas orações ensurdecedoras das conchas

no vento

no vento

a

a

v

e

desfolhou-se.



---------



Tudo em redor luzia nas mesmas trevas

Que levaram o teu coração

A achar um pássaro na gaiola.



Sonhemos então,

Nascidos de um riso nas lágrimas.



----



 

Ah, com as tréguas do tempo

posso eu bem,

quando pacifica e as mãos em concha

acomodam o bule.

Já não sei que lhe faça

quando tagarela como um insone.
 

Ah, viver como animais

e escrever como homens,

isso é que era, ver como

na avalanche da minha infância

a pedra do e rolou

e degenerou num a,

isso é que era.



Mas o apelo à eficácia, esse

entalhe dos desertos

que sósializa a vida,

não deixa

que se vulcanize a alegria.



E que eu faço eu ao tempo

que não se cala?



----



A secura daquele beijo

foi devorado até ao osso.



------



Baralhou todos os joelhos da sua vida.

ou foi por eles baralhado?

É quase um prodígio ficar tão à nora,

do lado de fora de joelhos

que como preciosos tentáculos o agarraram à vida

em álgidas noites de inverno.

Mas qual deles calou mais fundo em si,

escondido nos eflúvios?

O vento evade-lhe os nomes

e já os pormenores são trevas.



----



O vento folheou a ave

até ao fim

na sua primeira lição de geografia.

Depois ficou transparente

a tal ponto

que a ave voltou ao ovo.


 
 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

BAGAGEM/LADRILHOS 1/ A HEMATOLOGIA

Cartier-bresson
 
 
Revejo-me absolutamente no excerto que escolhi de um artigo de Maria João Cantinho sobre um livro meu e por isso o escolhi para pôr na contracapa deste Bagagem Não Reclamada. Diz assim:
 
«António Cabrita construiu um percurso singular e avesso aos vários "ismos" que percorrem o panorama literário português. A sucessão imagética é surpreendente, vertiginosa, e entrecortada pela introdução do banal, o que acentua essa estranheza do território poético do autor, convocando frequentemente o leitor pela sua ironia e jogo lúdico constante com o real. Cito-o, onde ele afirma: ´O poeta quer levar em consideração todas as coisas, não mora num mundo particular mas dentro da totalidade do mundo humano’, o que leva em conta que a consciência do poeta é ‘a antena da raça’ de que falava Pound, comungando desse pano de fundo que é a sua época ou a história. Daí que a poesia, enquanto modo de exercício pleno da liberdade, seja também o medium da apresentação da dor cósmica ou da catástrofe.
Ao mesmo tempo, esta poesia revela os pólos de uma extraordinária força metamórfica da linguagem e convoca uma "melancolia expansiva", em busca de uma possível redenção, por vezes vislumbrada, sendo o poema nele o lugar onde o mundo (re)nasce, pelo sangue inaugural da linguagem.»
Obrigado Castor, dificilmente alguma vez alguém voltará a escrever alguma coisa mais apropriada para o pouco que faça e por isso aí vã três vénias e um saco de meio quilo de caju.
Entretanto,
Bagagem é um livro onde convergem vários afluentes, de superfícies e freáticos, e tem várias portas de entrada. Em breves pinceladas, exponhamos alguns tópicos.
Signos de vida, o sangue e os canais que o irrigam: as veias.
Num sobrevoo por alguns sonetos de Bagagem é fácil notar que, como se guinadas fossem, em vários poemas as veias e o sangue se figuram como o contrapeso da morte:

(…)
Perder o Paraíso é como o outro,
perder uma veia num dedal
de chumbo e cinzas pia
mais fino. (…)
Ψ
 
 
Voz de um osso antigo
mas de um sangue síncrono
todo ele empenho e susto:
há que dar os primeiros passos
no vazio, o pleno vem atrás.
E é inútil dizer que não: Deus
soprou-me o sangue pela casa.
Ψ
 
 
(…) porque certo é:
veia que se deite logo arrefece
se outro coração não lhe deita a mão.
Ψ
 
 
Secreto condomínio: o de cada veia
no seu galho. E grave: com um nome
morto que assobia dentro em ti.
Ψ
 
 
Saberá que no labirinto da pele
Uma veia dá a volta ao mundo?
Ψ
 
 
Somos plantas que perderam a raiz –
o vislumbre de achá-las
é o que faz correr o sangue.
Ψ
 
 
Crendo embora que a vida
seja a morte por dom, exilei-me
e pelo resgate do sangue na bainha
de alguns versos respiro.

 
Embora às vezes seja necessário olhar a dor e a morte de frente, como nos dois sonetos do ciclo SEDA & FRUTOS, escrito quando a minha mãe morria de cancro, e que como pede o contacto com essas tangências mais informuláveis são poemas mais elípticos e antidiscursivos:
V
Atroz, a trepadeira
da dor. Escava
na fronte,
desinforma as precauções.

Atroz, como o bico
da narceja que imprime
na carne da ameixa
certificado de qualidade.
 
Tudo se emula
quando a Seda
assenta o seu rosto
 
no látego, tique-
-taque em deslaçado
voo, centrípeto.

 
VII
É assim que vejo a chamada
da morte: uma Seda
alumia num átimo
as claraboias interiores.

Ventilada por baixo
em plena prol, a ameixeira-
-brava descobre-se propensa,
e não amêijoa.
 
Menos um percalço
que um perdão:
olhar projectado
 
numa extensão que
laqueia a dor. Selo
lambido por um cego.
 
 

DA BAGAGEM AO LIBELO A FAVOR DO CURANDEIRISMO

 


1


Está pronto o meu livro de sonetos Bagagem não Reclamada, Alcance Editores.Vou à tarde buscar os exemplares a que tenho direito. É um livro singular que nas redutoras actuais condições em que se processam as edições no mundo de língua portuguesa dificilmente teria lugar noutro lado. Só a circunstância de à partida os livros terem um mercado exíguo em Moçambique, obedecendo portanto as motivações para os fazer a outros critérios, é que autoriza que um livro como este se faça. Neste momento eu não teria coragem de propor a mais nenhuma editora – em Portugal ou no Brasil – este livro e aliás por isso me resolvi a fazê-lo. E foi um gesto de grande coragem da editora levar a coisa até ao fim. Noutro espaço seria incerto. Aí está como os exemplos de liberdade surgem por vezes donde seria implausível esperá-los.


O género, o soneto, apesar do seu cunho histórico – ou precisamente por isso – levanta imediatas suspeitas. Tornou-se tabu e consente-se a poucos, excepcionalmente, praticá-lo. Até porque é de facto difícil, e poucos não deslizam no desafio. O livro foi-me sendo pingado ao longo de trinta anos. Nunca projectei na cabeça fazer um soneto quando lanço o primeiro verso – é-me simplesmente um ritmo que às vezes me é favorável. Bastou-me aceitar a coisa.

São 180 sonetos – o mais das vezes rudes, fanhosos, densos, barrocos. E é literatura sobre literatura, em torno das palavras e no torno da memória da escrita. Um livro que cairá em Moçambique como um objecto estranhíssimo, gongórico, e que só teria filiação nos sonetos de João Pedro Grabato Dias, que já ninguém lê há mais de vinte anos. Serei com certeza acusado de hermético. Mas o hermetismo sempre atrai os jovens e se por essa via influenciar alguns jovens a sair da linha saturada da poesia social terei feito algum serviço.

Nada tenho contra a poesia social, apenas contra a muita má poesia social que o mais das vezes se pratica em nome das inércias políticas e da preguiça, bem como contra "o dirigismo" das vias dominantes. Aprender que um verso pode surgir apenas por se amar as palavras e a conversa subtil que as palavras organizam entre si pode ser o mais salutar dos antídotos. Mesmo que seja no rasto de uma irradiação que não nos deixa ver claro e levanta mais perguntas que respostas. A poesia tem tudo a ganhar com as perguntas.

Contudo, tenho consciência que há neste momento poucos leitores para o meu livro em Moçambique e que ele me trará mais inimigos e recriminações veladas, uma por outra chacota. A tudo encolho os ombros. A vantagem dos sonetos é que dá umas enormes margens brancas na página onde tais criaturas poderão fazer jorrar as suas imprecações e reptos e contra mim escrever as suas obras-primas.

Não faço ideia de como será recebido em Portugal, embora o unânime sucesso crítico de A Maldição de Ondina me tenha posto na mira. E aí o nível médio dos leitores, sobretudo de poesia, é mais alto, pelo que o livro, para lá, não traz, como não pretende, novidades.

Pessoalmente, para o bem e o mal, acho que o livro é um marco na minha obra.

Ficam agora por editar três inéditos de poesia, bastante diferentes deste após o que posso finalmente pôr-me em acordo comigo e abandonar esta arte. Aliás por boas razões: lendo os poemas luminosos que o Paulo José Miranda anda a publicar no facebook, e apenas no facebook – renunciou a publicar poesia em livro -, compreendo que o mundo não precisa de mais ruído, e para já, não tenho mais nada a dizer em verso.

O que, ao contrário do que pensaria, há uma década atrás, não me desgosta nada, só me encanta. Estou de novo numa fase em que necessito de me libertar da poesia para um dia, se acontecer, voltar a ela, mais livre e irmanado com os elementos.



2


Estou um pouco desapontado com o livro que a Paulina Chiziane co-escreveu com o curandeiro Rasta Pita, Por Quem Vibram os Tambores do Além? (Índico Editores)

Todos os livros que quebrem com a tirania do positivismo e os preconceitos do racionalismo são bem-vindos. O problema é que este tipo de "abertura" exige mais rigor e, até para se sustentar uma autoridade identitária, um maior afã comparativo. O livro limita-se a seguir a trajectória de vida do curandeiro até este se tornar um xamã. Infância, sonhos premonitórios, provações, e iniciação na medicina tradicional; ao que se segue a apresentação de alguns tópicos da "morfologia conceptual" do pensamento mágico: as árvores, os espíritos, os fantasmas, os animais e os espíritos, os espíritos das águas, etc.

Nada que qualquer bom tratado sobre as religiões tradicionais do mundo não traga.

A necessidade de por causa da febre do Afrocentismo se apresentar as práticas e crenças tradicionais africanas como originais, e únicas, quando muitos dos seus fundamentos e elementos são verificáveis em muitas culturas e lugares enfraquece a pretensão do livro pois o seu pendor descritivo e crédulo acaba por não firmar a legitimidade que se pretendia.

Por exemplo, o que na página 31 se lê como referente à relação do africano com a natureza é afinal análogo à ideia de Ressonância que acomoda a Natureza no Taoísmo. Ou quando se lê que o curandeiro se presta para leitura dos três olhos do coco: «Lançam-se as pedras ou conchas e pergunta-se: o que diz o teu olho sobre a tua vida? O que diz o olho do mundo? Ou o que diz o olho de Deus» detecta-se imediatamente que a lógica que ele segue é semelhante à do isomorfismo que está por trás dos jogos de adivinhação do I Ching.

Ou seja, uma leitura comparada deste saber africano com os saberes de outras tradições acabaria por reforçar a sua pertinência e ser mais útil à afirmação da sua validade que a máscara de uma pretensão identitária que só parte do desconhecimento e por isso exige a crença (um instrumento menos fidedigno do que a evidência) para que se aceite cruzar o umbral entre a realidade e a ilusão.

Outro flagrante caso de falta de rigor é o que apresenta a suposta cura de Dismas, o irmão de Rasta, na infância destes. Um dia Dismas acordou e não conseguia mexer as pernas. E explica ele: «Quando estive a dormir, vi em sonhos uma mulher que veio só para me pegar as pernas e depois desapareceu» (pág.44).

O que é facto é se passaram anos sem que Dismas se conseguisse locomover – e nem as idas à igreja cristã ou ao médico trouxeram qualquer restabelecimento ao irmão do curandeiro. Este entretanto ia tendo sonhos que lhe anunciavam que a cura daquele se daria através da medicina tradicional e com um determinado curandeiro, mas a mãe não lhe ligava. Só ao fim de anos de impotência e de combate frustrado contra a doença é que a mãe resolveu seguir os conselhos dos sonhos de Rasta. Lá localizaram o curandeiro, num lugar distante de casa, e então os dois rapazes ficaram com o terapeuta vários meses até à melhoria de Dismas. Voltam então casa e podem então voltar à escola.

E na página 54 lê-se: «Ele (Dismas) era bom de briga, apesar da deficiência. Ele atacava e se defendia como ninguém. Gatinhando, surpreendia o adversário, agarrava-o pelas pernas. Bastava conseguir derrubá-lo esmurrava-o até não poder mais».

Apesar da particular incidência dos sonhos premonitórios de Rasta, que lhe definiram a vocação futura, apesar dos especiais atributos do curandeiro Sindano, a melhoria de Dismas não se mostra brilhante. Tudo isto ilustra cabalmente uma manifestação de crença sem provar um efectivo resultado terapêutico, e creio que os "poderes" de Rasta Pita lhe terão de ter chegado por via de outros sonhos mais poderosos e de ensinamentos mais eficazes.

Tal como estão na narrativa a coisa não é crível, ou só para quem à partida já seja crente.

Igualmente, não sabemos que dizer quando, ignorando o papel do inconsciente que um século de psicanálise mapeou, se toma por um espírito o alter-ego que se figura no sonho, dando por mágico o que seja o simples trabalho da "mecânica dos sonhos" (pág. 199, o exemplo do mecânico de automóveis), sem que um olhar crítico separe naquilo que Rasta conta o trigo do joio.

Estes involuntários "actos de idiolatria" não servem os propósitos do livro e com eles Paulina não protege o seu amigo aproximando-o sem querer, e em alguns momentos, da charlatanice, o que é pena e o livro não merecia pois, apesar deste ser um livro ingénuo (no sentido em que nunca se auto-interroga e não num sentido depreciativo) é claramente honesto, como honestos são os seus protagonistas.

Enfim, um livro cheio de boas intenções, que nos elucida sobre uma certa "poética" de relacionamento com o mundo e cumpre ao nível duma primeira divulgação imediata mas que, a níveis mais analíticos, é uma oportunidade algo malograda para falar seriamente de saberes transpessoais.

O que era vital.

(Parabéns ao bom trabalho gráfico do Lénio Ussivane)


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

UM PHOTOMATON E UMA CANÇÃO DESENCRAVADOS

 
 
 
estes vão p’ró moço Henrique Fialho, que faz anos,
a quem admiro e que felizmente é casmurro


1. BECKETT


E num relance é-me evidente: a estreita cabeça
do Beckett é uma armação totalmente vegetal, 
e no pergaminho do seu rosto  
escondem-se um repolho e duas folhas.


Sim, as que emergem dum pescoço filiforme
que quis chegar às estrelas mas se resignou
em pecíolo e em cuja metade pulsa, inútil,
aquela vagem do tamanho dum amendoim.

 
Num relance, isento de estigmas, é-me evidente
que a leitura da sua acostumada imagem,
entre ave de rapina e angústia,
lhe vem da extrema lentidão,


uma lentidão de estuque ainda fresco,
da lenta fruição da clorofila
que o autor partilha com as suas personagens
e até no modo recalcitrante como lutam & lutam

 
consigo mesmas, pelo vão ensejo de parecerem
mais activas que contemplativas.
Fito-lhe o retrato imaginando que plantas
hão de ser tão emaranhadas. Como se ele em criança


tivesse queimado o rosto com uma máscara
de funcho. Peço um Grants, duplo,
pois quero vê-lo espelhado nos estalidos
do gelo, e então ouço-o

segredar-me, num irlandês
de duas gemas de ovo:
"Creio que inventámos o amor
para que Deus não se suicide!"


retrato de Lou Reed por Alice W R
 

2. LOU REED



Vendia botões de madrepérola em Brooklin
o janota que tinha um deus
que vivia em três mundos.
Mas assim que montava o selim
de freguesa auspiciosa,
com fundos e amante de folhetim,
punha um ar de bezerro
em ultra-levure
e trauteava-lhes, a boca
em fotogravura,
tu tu tu, satellite of love
tu tu tu, satellite of love.


Não era o único truque do sabido
também lhes recomendava book
sobre a pintura dos bambus,
que num ressoante vagido
largavam ao vento o nome das viúvas
ou das solteiras mais injustiçadas
aquelas que catrapus
fariam cair de novo o império romano,
e depois: tu tu tu tu, satellite of love
Tu tu tu tu, satellite of love.

 
Passou duas noites na esquadra
por assédio, onde defendeu
que não passava dum budista primitivo
e talvez dos médios, dos menos atractivos.
Mas houve uma Fátima que lhe pegou
- eu dou-te o meu lençol e tu dás-me o coração –
que bom cair nas trampas da ilusão;
há-de no rastilho tornar-se mártir do Islão?
tu tu tu, satellite of love
tu tu tu, satellite of love
tu tu tu, sa-te-lli-te-of-lo-ve

 


terça-feira, 19 de novembro de 2013

DA RESPONSABILIDADE DE NOTICIAR

 

Recebi hoje de manhã, por mail, a carta, que transcrevo em baixo, do escritor e antropólogo José Pimentel Teixeira e que ele endereça à direcção do semanário Expresso, a propósito da notícia que nela se discute.
Manifesto aqui a minha igual dúvida sobre a oportunidade e a pertinência da notícia, dado o actual contexto político-social que é vivido pelos emigrantes residentes em Moçambique (ou também em Angola).
Tudo o que sublinhei na carta de Pimentel Teixeira é exacto - e ele, nos últimos meses, tem sido dos primeiros a desdramatizar em vários postais, no seu Ma-schamba, o ambiente que se vive, sobretudo em Maputo, deitando água na fervura de algumas reportagens mais sensacionalistas que em Portugal têm saído sobre Moçambique. Contudo, esta "pérola" era desnecessária, ou reflecte um sentido de responsabilidade algo ambíguo.
Tanto destaque dado a revelações tão pífias! Há algum desajuste entre a necessidade de resguardar o direito de informar a todo o transe e o efeito pernicioso que uma coisa "tão pouca" causa sobre os portugueses que cá vivem.
Mas leia-se a carta do José Pimentel Teixeira:  

«Para: Director do jornal Expresso

Acabo de ler a notícia publicada pelo Expresso sobre a colaboração dos serviços de informação portugueses e os seus homólogos americanos, bem como a comunicação da direcção do jornal subscrevendo essa notícia e reafirmando o seu conteúdo.

Não é preciso ser um grande leitor de Le Carré para acreditar nisto. Não é preciso ser muito atento para comentar essa vossa notícia com um "isso é notícia?", no sentido de questionar a sua novidade, a sua urgente actualidade.

Sou português e vivo há 17 anos em Moçambique. Para além dos problemas económicos e sociais que o país vive nunca, como desde meados de 1990s, quando o conheci, se assistiu a uma situação tão tensa, política, militar e criminalmente. E nunca como agora se assistiu a uma campanha pública, mediática, com utilização de argumentações racialistas e racistas tão exarcebadas. Para além disso recuperou-se a utilização de algum anátema sobre os portugueses residentes. Tudo isto é público, e com toda a certeza do conhecimento do pessoal de um jornal com a dimensão do Expresso.

 
A notícia em causa, do seu jornal, li-a ecoada por moçambicanos. Provocando imediatos, evidentes, e até compreensíveis, ditirambos contra nós.

Os critérios sobre o que é notícia, o que é relevante, o que é novidade, o que é urgente, o que é inultrapassável, são seus, e da equipa que dirige.

E com toda a certeza lhe serão indiferentes os efeitos explícitos e implícitos de uma notícia destas, aparentemente sonante mas que é apenas uma coisa morna que serve para a resmunguice interna. Efeitos sobre os seus compatriotas que, sem terem nada a ver com isso, estão a cruzar este momento aqui. E que vivem num contexto em que essa "morna" caixa que aí arranjaram, e V. coordenou, tem ou poderá ter outra temperatura e efeitos bem mais duradouros.

Isto diz muito mais sobre si, director do Expresso, e sobre o seu colectivo, do que sobre as trocas de informação entre serviços de informação de países aliados. Diz, evidentemente, muito mal.

Em termos nacionais, algo que ainda é de prezar, o que V. mandou ou permitiu fazer é uma malevolência.

E, creio, num país distraído como o nosso ninguém lho dirá. Até lhe aplaudirão a pertinência.

 

É esse o (nosso) mal.»

Creio que da parte do Expresso e da sua direcção houve apenas alguma incúria causada pelo desconhecimento do território. O problema é que estes deslizes se repetem na comunicação social portuguesa, que não entendeu ainda as particularidades de se lidar com uma ex-colónia.
Para se entender melhor o dano e a que ponto as coisas estão quentes coligi alguns comentários à notícia escritos no site do diário O País, de Maputo, só de ontem para hoje, e teremos de ter em conta que estes comentários são produzidos pela élite urbana de Moçambique, por aqueles que têm acesso à net, sendo na sua maior parte gente de nível médio/universitário:

Top of Form 1

Bottom of Form 1

Ricky Momad · Comentador principal · Software Engineer na empresa Critical Software

Essa é uma situação extremamente complicada o nosso ministro dos Negócios estrangeiros no quadro das suas competências devia convocar o Emabixador de Portugal a explicar-se sobre o assunto, mas a mim essa informação não me expanta nem tão pouco, só espero que algumas pessoas percebam que estamos num mundo glabalizado e todos querem tirar ganhos de todos, sinto pena de Portugal estar a colaborar nessa espionagem numa altura destas em que precisa de África pra sobreviver e particularmente de Moçambique e Angola como grandes parceiros de Negócios, África tbm deve aprender de uma vez por todas que deve se unir pra sobreviver neste Globo.

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antoniodacosta.oliveira (com sessão iniciada através de yahoo)

PORTUGUESES, PARASITAS DE MERDA, FILHOS DA PUTA. QUE DEIXEM EM PAZ A AFRICA, RESOLVEM OS PROBLEMAS DO VOSSO RECTANGULO MISERAVEL, QUE AFUNDOU-SE NO MAR DE MERDA.

Paulo Ricardo Pereira Tina · Comentador principal · Progress College

e ironico neste momento tarmos aqui a chamar de "brancos exploradores" no entando usamos o facebook mesmo para comentar neste jornal, facebook que ta sempre a partilhar informacao com a nsa, facebook um site 110% americano, aonde todas nossas fotos informacoes e chats, sao automaticamente guardados nos servidores do NSA e CIA..... por isso pessoal.... nao podemos virar as costas para realidade do mundo....tamos na era da Globalizacao aonde todo mundo usa e ajuda aproveita explora..... todo mundo...


Seus vermes, mortos de fome, portugueses de carralho de merda, pensam o que? Mocambique e nosso e independente! Podem fornecer todo tipo de informacao que voces quiserem e a quem quiserem, aqui ja nao tem nenhuma chance de recolonizar. Que se lixem com a vossa pobreza e nos deixem em paz seus fantoches!


 


Filhos da Pu**** desses tugas e de todo esse bando de exploradores. . .se eu fosse o PR cortava as relações com esses culh***** e lhes mandava passear.

 


Olhando para esta situação, Robert Mugabe fez bem em mandar embora os Ingleses, suspender vistos dos portugueses é um pouco de exagero, mas temos que rever as relações diplomaticas com estes Portugueses falidos. Unico investimento valioso que portugal tinha era HCB, se Angola deixar de investir em Portugal, vão para banca rota. Mal criados!!

 


ABUSO DE CONFIANÇA E DE PREPOTÊNCIA DE PORTUGAL. MOÇAMBIQUE TEM QUE ACCIONAR MECANISMOS PARA PEDIR ESCLARECIMENTOS. MOÇAMBIQUE JÁ NÃO VOSSA COLÓNIA, MAS PAIS SOBERANO. SEUS ABUSADOS.


 


estes tugas do raio , estao a dar uma de grandes investigadores , pobres do raio , nao vao entrar mais em moçambique e os que ca estao terao vida negra ate voltarem a terras lusa , macacos .


 


E QUANDO VOS DAO ALGUNS DOLLARS DIZEM: "OS NOSSOS AMIGOS PORTUGUESE". O AMIGO DO AFRICA FOI E SEMPRE SERA O AFRICANO, E TODOS OS BRANCOS, NAO INTERESSA DE QUE PAIS SAO IGUAIS, UNIDOS E SEMPRE JUNTOS LUTAM CONTRA O DESENVOLVIMENTO DE AFRICA ABERTA E CLANDESTINAMENTE. O QUE FUNCIONA AQUI, OS AFRICANOS PRECISAM PERCEBER QUE E A COR DA PELE E NAO A AMIZADE. OS BRANCOS TODOS SAO EXPLORADORES DOS AFRICANOS. ACORDEM POVO!!!!

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Jossias, o complexo e' deixar passar. quem nos explora sao os brancos. nao leste qual e' a receita do governo nos recursos naturais? a FMI, BM, e' k deixam nos nesse estado onde estamos. o governo e' culpado pk aceita assinar esses contratos desvantasojos mas sabes k os lideres africanos k nao se identificam com o neocolonialismo e exploracao sao julgados no TPI . abra a vista, o problema nao sao os lideres ou o governo mas sim o sistema. esta ai Zimbabwe e Africa do sul para perceber o k esta acontecendo Mugabe era o lider icone para os europeus mas quando decidiu levar a terra das maos dos brancos que reprentam a minoria deixaram o pais numa crise de tirar lagrimas. EUA e Europa dizem k se A Africa nao aceita homossexualismo vao cortar as doacoes. nao ves k nao temos nenhum poder mesmo?


 


Cuidado... Nós, temos a dor dos nossos avos. Independentes africanos nao expulsaram esses pra darem mais oportunidades. Respeitem no vosso hino


Ontem às 6:33 através de telemóvel · Gosto · 2

 

Ontem às 7:40 através de telemóvel · Gosto ·

 

1HYPERLINK "https://www.facebook.com/raimundosilvestre.bucuane"Raimundo Silvestre Bucuane Espero k a relacao luso-mocambique termine mais rapido possivel pk isso é uma traicao

há 13 horas através de telemóvel · Gosto · 1

Eu como estou entretido a passar para mp3 tudo o que encontro de Takemitsu e de George Crumb no Youtube, e pouco saio de casa, creio que estarei mais a salvo da agressividade que os meus compatriotas operários sofrerão na pele, entre bocas e feios soslaios. Esperemos que a coisa não degenere nuns calduços - que a violência anda à flor de todas as oportunidades.
E preocupo-me com  tranquilidade das minhas filhas que todos os dias têm de atravessar a cidade para ir e vir da escola.
Moçambique, para quem ainda não percebeu, não é só praias e palmeiras. Tem também a rudeza da foto que pus em cima, e a sua paisagem humana é sensível aos conflitos latentes que, por estes dias, estão ao rubro. 
Escusamos é de pôr lá lenha.
 

 
 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

AS ESTRELAS DE SÍLVIA BRAGANÇA

antares 2
 

A Silvia Bragança, uma amiga pintora de 75 anos de idade e com um percurso extenso e multifacetado, inaugurou ontem uma exposição na Fortaleza, em Maputo. Fiz para o catálogo o texto que vai em baixo e no momento li o texto que pinga a seguir. A exposição vai continuar, na Fortaleza, durante o próximo mês.  

Como transmite o anjo? As formas de comunicação angélica distinguem-se dos modos de ver e de aprender sensíveis, e o anjo testemunha o mistério na sua forma mistérica, transmite o invisível enquanto invisível, não o atraiçoa com os sentidos.

O anjo actua como um espelho, certamente, mas da pureza do silêncio e do mistério de Deus.

E mesmo que o homem se encontre num estado de não-dualidade, num estado de enosis (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente, segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade». O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «creem no divino/ só aqueles que o são».

O que tem isto a ver com a exposição que Sílvia Bragança nos apresenta? Tudo, e não na acepção relativista de tudo reconduzir a tudo, mas no sentido em que existe nesta pintura um entrelaçamento entre as realidades conscientes e o inconsciente, como acontece na respiração. Na nossa e na respiração das Estrelas, nos seus pulsares, que aqui se representam - numa radiografia da luz.

 
betelgueuse  2
 
 
Para Sílvia Bragança pintar e pensar são uma e a mesma coisa. Ao ponto de ter havido uma fase da sua obra plástica em que as linhas se confundiam com a experiência saturada das letras e o desenho com a cristalização das frases. Por outro lado, Silvia sofre da mesma confiança que fazia Cézanne declarar que a cor é o «lugar onde o nosso cérebro e o universo se reúnem».
 
O que talvez falte à pintora e pedagoga Sílvia Bragança, para se entender de imediato a mensagem que lhe motivou estas imagens, é uma memória panorâmica do seu trajecto nas artes, para que se veja que esta criadora, que se renovou sempre nas formas, nos materiais e na abordagem dos seus temas, tem perseguido dois temas fundamentais: o da Solidariedade - que se realiza na liberdade e na paz e a levou a quadros e desenhos de denúncia (sobretudo da guerra) -, e o do Sagrado, visível em muitas representações explícitas da Virgem e do Menino, que realizou ao longo da sua vida (- e que aliás lhe valeram o repúdio numa exposição em Moçambique, numa história tão triste como anedótica, como se as revoluções estéticas fossem apenas rupturas e não também movimentos de translação que acabam por nos recolocar no exacto ponto de partida: i.é, face à história da pintura e das suas variações) e noutras obras abstractas em que materiais (rodas, engrenagens ou bandas de metal coladas sobre a tela) heterogéneos buscavam harmonizar-se e dispor-se segundo um princípio de atracção das cores e dos materiais que visava duplicar um vínculo de re-ligação perene: as leis do Amor.

Ora, o Amor é uma das portas de entrada do Sagrado.

Sílvia Bragança nunca teve receio de experimentar, formas e formatos, tecnologias, materiais (rendas, tecidos, transparências, engrenagens, tela, imagens digitais, etc.) e processos, nem de misturar as iconologias ocidentais com as indianas, e até combinou as paletas de cores das diversas tradições. Fê-lo sempre em confluência, e até no dever ético de reconduzir a pobreza à expressão. Volta a fazê-lo nestas quase duas dezenas de imagens que têm por tema as Estrelas, num gesto visionário que o poeta Lucrécio aprovaria.

 
rigel 2
 
 
Diga-se já que esta é uma pintura ecológica posto que visa relembrar-nos que o homem participa de duas realidades - a da vida material e a do macrocosmos (a "materialidade espiritual", diluída a contradição, que nos catapulta para o Sagrado) -, e que não passa, como fugaz entidade, de um elo. Face aos fantasmas da violência – a fome, a guerra, a ganância, o egoísmo, a injustiça - que o homem, por soberba, provoca na sua vida social, Sílvia, quebrando definitivamente nesta pintura "o espelho da realidade" que era a pintura figurativa, coloca-nos diante do inapreensível, da dimensão cósmica, devolve-nos à nossa pequenez. Eis uma forma diferente de fazer política que agradaria a Roberto Matta, o pintor chileno de grande empenho revolucionário que em vez de pintar retratos dos líderes políticos se dedicava a figurar barrocas visões do cosmos e da quarta dimensão.
 
rigel 1

De origem indiana, cultura que cada vez cava mais fundo nela, Silvia projecta-nos no "Tu és ISSO" da Chandogya Upanishad, simbolizando esse Isso a plena exterioridade do que nos conforma e é, simultaneamente, tanto o nosso contexto como o que, interiormente, nos constitui: por ex., as Estrelas e a sua luz, "exteriores" a nós e essenciais à nossa matriz mais molecular.

Com esta particular visão de algumas estrelas que constelam o nosso céu, físico ou imaginário (Betelgueuse, Sol, Arcturus, Sirius, Pollux, Antares, entre outras) Sílvia Bragança dá-nos um suporte para nos ausentarmos de nós mesmos, até à fissão dos nós mais entranhados do nosso ego, numa contemplação que nos pode ajudar a desembaraçar o peso do vivido; pois como sabia Nietzsche afirmar não é carregar a vida com o peso dos valores superiores, mesmo os heróicos, mas sim criar valores novos.

Contemplar as estrelas, além de nos penetrar de humildade, ajuda-nos a esvaziar a sombra da sua infinidade de ecos e aproxima-nos do silêncio.

Nestes quadros a beleza – categoria cara à pintora – é desatada (é o termo) pela nossa sensibilização aos sinais de uma coerência orgânica, formal, que nos conecta a uma vibração "óptica" particular e apaziguadora. Mais do que ver os quadros simplesmente estas imagens, somos submetidos à sua influência, creio.

Concreções orgânicas, sedimentos de luz, feixes e fluidos coloridos com texturas que por vezes tomam grumos e se irisam em torvelinhos, estes quadros convidam-nos a olhar para lá do que é aparente, e a procurar compreender como as cores latejam, interagem e se relacionam em superfícies luminosas onde os nossos fantasmas já não cabem. Como se fossem cunhagens originais de antes do nosso mundo referencial – o que talvez nos torne o inferno habitável.
 

sol 1
 

 
Olhar para estas estrelas talvez nos perca, talvez nos salve. Como acontecia com Kandinsky e Mondrian, que também não temiam a palavra ascese.

Gostaria de acabar citando um belíssimo trecho do filósofo Rafael Argullol: «A ideia mais audaz que pode conceber-se é a de um infinito que, enamorado da nossa vida, só através desta tenha a sua razão de ser.»

Por isso me parecem tão humanas estas estrelas de Sílvia Bragança. Deixe-se contaminar.



terra 1


2.


 
Pouco sei sobre a astronomia africana e por isso não me vou pôr a inventar, mas sei que, ao contrário do que muita gente julga, nas sociedades axiais, isto é, nas diferentes sociedades tradicionais – como a hindu, a chinesa, a africana ou a cristã medieval -, há muitos pontos de contacto sobre imensas matérias. E por isso trago em meu socorro o Dante, que foi talvez o maior expoente do que seja o pensamento tradicional na Europa, e que no Canto I, depois de ter vislumbrado o Inferno, escreveu:

«Então o medo acalmou um pouco –
O tempo de desânimo, passado na grande angústia
Que no lago do coração ainda durava…»

Este lago no coração é o que nos importa para aqui.

Acreditavam muitos naquele tempo que existia no coração uma cavidade – que o poeta chamava lago del cor – onde habitava o espírito vital. Dessa cavidade partia o sangue e o calor que o tal espírito vital derramava por todo o corpo. No coração estavam assim sediados os sustos, as paixões, os temores, etc. Não no coração por inteiro mas especialmente nesse lago del cor.

Cabe lembrar que uma das características dos lagos é serem um espelho do firmamento, das estrelas. Ou seja, numa perspectiva que hoje chamaríamos de holística, os astros estavam umbilicalmente ligados ao destino e aos acidentes sofridos pelos humanos pelo que, como se diz na Tábua de Trismegisto, um das bíblias da alquimia, o que está em cima, ou o macrocosmos, reflectia-se no que estava em baixo, no microcosmos.

Tudo isto pareceria um pouco esotérico para uma exposição de pintura se a pintora não fosse a Sílvia Bragança, que tem vindo a firmar-se numa busca espiritual em que cada elemento pictórico exige ser re-significado na constelação a que pertence. Não esqueçamos que uma das suas últimas exposições tentava associar a dinâmica da relação entre as cores às ocultas leis da matemática. Fê-lo intuitivamente, mas isso apenas ilustrava a sua demanda de uma verdade para a pintura.

Dizemos verdade para a pintura e não para a representação – pois tendo sido ela uma pintora que alternou sempre entre vertentes de abstração e outras neo-figurativas, exactamente nesta exposição deixa-nos a patinar na perplexidade, sem a muleta da representação de um modelo. Esta pintura não representa nada que nos seja conhecido previamente, antes apresenta, como se fosse uma substância nutritiva, pautas de relação cromática que cabe a cada um de nós aceitar ou não, mas que são dinâmicas e nos mexem com a sensibilidade.

São estrelas, diz a sua autora, ou os modos subjectivos como ela as vê e sente e nos transmite, na secreta esperança de que estas figuras – com os seus arabescos, bandas de cor, pulsações e traços - sejam correias de transmissão para uma re-ligação com a luz e o afecto universal.

Isto é, esta pintura não nos deixa indiferentes, convida-nos a aceitar ou a rejeitá-la, mas sobretudo, ao prescindir das categorias que normalmente relacionamos com a arte: a beleza, a composição, as simetrias da empatia, as marcas de reconhecimento, creio que nos desloca para uma zona onde a dimensão do mistério volta a fazer sentido – esta é uma estética da comunhão, onde se desenha outro tipo de harmonias, orgânicas, as quais se articulam não como como objectos definitivos, acabados, mas antes como um lugar de passagem.

E precisamente por isso, do ponto de vista estético, esta é uma aposta de risco, sendo que, para mim, sobretudo quando o risco se ancora num percurso com uma dimensão humana e expressiva inegáveis, onde há empenho no risco ocasiona-se a arte porque esta nos abre novas janelas para meandros da percepção e da sensibilidade que ainda não estavam iluminados.

domingo, 10 de novembro de 2013

MÉTODO E ECLIPSE: QUATRO PRIMEIRAS PROPOSIÇÕES

                      depois de ter lido o unicórnio, de juan emar, na minha sala de leituras


 

1

Se quero rejeitar a presença da metáfora num poema

faço um compasso de espera.

Após o que pego no transferidor

e meço os ângulos ao intervalo. Em tendo dúvidas uso a fita métrica

avaliando a justeza do colarinho ao pescoço

que me ergue a cabeça.

Tem de estar cingido para eu estar apto a reflectir com equilíbrio.

Não é raro um desajuste, posto eu comprar as camisas

nas calamidades. Um número abaixo ou acima

abre-me um furo na precisão do raciocínio,

e pode brotar por esse mínimo lapso o corno de unicórnio.

É assim desde criança, quando fazia birra antes de dormir

e repetia histérico "não caibo no sono, não caibo no sono…",

debatendo-me para entrar dentro do saco

antes que me nascesse na testa a armação.

                                   : neste espaço respiro,

enquanto espero que as metáforas se aquietem

ou que o vinho mas amorteça, nesse limiar

onde toda a chuva se distrai do dilúvio apesar

da linguagem atrair desde o fundo do mar insondáveis hexâmetros.

Eu sou budista, não me fixo em nenhuma imagem, nuvens que vêm e vão,

senão faço                                           um compasso de espera

e no sofá da sala deito-me em migração para o consolo dos clássicos.

Metáfora comigo não entra desde que Andrómaca trocou

o amor-próprio pela contemplação da espuma dos oceanos

e inaugurou com a traição a Heitor uma figura de estilo.

Comigo nenhum esqueleto

é bailarino ou se imagina o grumo que burla o nada,

de papel a neve. Mesmo no meio do nevoeiro procuro os factos.

E a esse cárcere vulgar que é a metáfora num verso, abomino.

Logo que me chega necessidade de abrir o compasso apago a luz

e se insistente me invade a questão, excruciante:

está de luto o carvão que não acha a sua chama?

pego no balde de cal e caio, caio, caio, caio o escuro

até à exaustão da mente. E não me falem de deus, que

a sua tosse convulsa mata em mim o melómano.

 

2

O tema único é afinal o amor

ainda que assombrado pela morte

que assiste da varanda ao erro

da sua desatendida designação perpétua.

Tema que por um breve lampejo

tem o valor da ostra

ou de uma ou outra gargalhada

num país de tristes.

Quando falo de ostras falo de pulmão,

dessa breve ignição que leva o reformado

a lançar as cartas no jardim

e a derrotar o labirinto.



3

Agradeço a este verso não me deixar ao léu.

E, confesso, cabem-lhe também ter feito os desenhos

utilizados nesta página. Queria então, ao menos,

ter dado um timbre ao poema, a feição polifónica

e ambulatória de um sampler.

Mas assim que ela chegou – palhaço

enfarinhado ou homem diagonal ao seu ridículo –

vi-me privado do jogo de questionamento das identidades,

absorvido simplesmente pela sua presença,

como se estivesse em lótus no topo rochoso

de um fiorde norueguês e a minha respiração,

pontiaguda, fosse perfurada pela paisagem,

à beira da exaltação que, estranha à vontade,

antecipa a penetração. Sob o tecto deste verso

que não me deixou ao léu

e me eximiu da matéria da cólera,

devolvido ao sinal gráfico

de ser um só, felino empoleirado num talo

que foca mas não chega ao céu.




4                             (Denise Levertov)


Enquanto o meu amigo lê, mija o urso branco,

placidamente, tinge a neve

de açafrão.


No preciso momento da leitura, espreguiça-se um ror

de deuses entre as lianas: com olhos de obsidiana

vigiam gerações de folhas.


À medida que vai lendo

volta o mar às suas páginas mais negras,

folheando-as

com sombrio humor.




 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

TREZE TALHADAS DE EPICURO COM AÇÚCAR

ALICE W R, almost disappeared
 
Talvez porque tenha conhecido bons filhos da mãe entre os poetas mais líricos, tenho algumas dificuldades em aceitar em mim tais margens de açúcar, mas enfim, os tempos que me rodeiam  estão de guerra e talvez seja tempo de esvaziar gavetas, tão bissextas. Aqui fica num primeiro postal, um ciclo que terá uns sete anos pelo menos e que nunca inclui em qualquer livro, sendo este o seu lugar certo.
 
EPICURO NO TEU JARDIM
1
O sopro, transpiração
de dentro, catálogo
do que a palavra
não oxidou; o sopro,

em andas de carne,
pintado com branco
de cereja - a sua felicidade
esplendia. O invisível

é sempre o mesmo
mas o visível não
e solta-me os lábios
no declive do teu nome.


2
Psiu, psiu, não há impasse
quando passas e a velha
rua de paralelepípedos
levanta as saias

pra mostrar a terra
ao rubro, não há impasse
quando nos velhos casarões,
de supetão, despontam varandas

de ciúme, não há impasse.
Refém fica o mundo,
e no deserto
adestram-se besteiros.



3

Vejo p’lo menos um
falcão no teu punho:

a minha memória
que desiste de ser alga
no céu. Vejo p’lo

menos um jardim
suspenso no mapa
da retina:

a tua mão, mais
larga que o meu medo,

a acariciar a paisagem
que te procura.


4
Por corsário, almirante,
por mexeriqueiro alcião
me tomava, quando
a canícula me pôs
a boca no teu arroio.
 
O mundo engrandece
o homem se pelo in-
verso da foz três carpas
resvaladiças fazem furos
no oxigénio e lhe crivam
na gema da memória
pupilas castanho-oliva.



5
Vaticínios que a tua vontade
incinera, látego
de um bezouro
que a estela espalmou.

Descampados ficam os braços
se te ausentas,
que desperdício os olhos
se a tua mão

não os tapa, no umbral
do teu silêncio respira
a minha palavra,
ilhada.


6
Um só poro,
que uma ruga
em ti revolva,
faz-me falta.

Os antúrios não
florescem sem
a sombra da tua
tesoura. Eis

o fulcro do que
me põe absorto:
perder de vista
o mar.



7
Alçado na tua voz
como o rouxinol
na alba da morte,

ou a malha cativa
na tua meia. Não
estou só, a luz
 
é um fiel vassalo
do relâmpago.


8
A sede é tanta, tanta,
que a morte é serena
e craveja de irrealidade
as cercanias e o exterior.
 
Engordar, rir, enrubescer,
incidências tão vagas
como domingos implumes.
Mas quando passas

inflamam-se as antenas,
sou mariposa fixada p’los
estames de dentes-de-leão
e o múltiplo ventila o um.
 


9
Deixa que me embriague,
ou falho de visão
cairei no tráfego
da poeira, em vez
de convocar astros,
os imensos girassóis
que a procela acossa.

Deixa que me embriague
na floração do teu sangue
e nada obstruirá
na glande a sua
panorâmica sideral.


10
Ruivo é o sol.
Tu és a umbria manhã
onde o azouge
executa as sombras,
lembrando que todo
o limo é pedra,
e o vento ideograma
à cata de leitor.

Verde é o sol
e só na umbrosa
aspa do teu corpo
chameja o frescor.



11
Olhar sonâmbulo,
carícia sonâmbula,
obsessão sonâmbula,
a que faz nascer
a minha língua na tua
boca, e vaporiza
a tua nicotina nos meus
pulmões, e umbilica
o teu sexo à minha
figueira maldita.
Recomenda-se
aos vindouros: não
ponham terra, não
ponham flores em cima,
ponham ar, ar fresco – pois
sonâmbula era a música.


12
Tão vulgarizada a metáfora
do espelho, julgava impossível
a novidade. Mas num filme
sobre um país libertado
vi um jovem que pedia
a um estrangeiro: tira-me
uma fotografia, nunca
me vi ao espelho.

E percebi: só
magnificado pelo qu’
esplendes, raiado
em ti, me vejo.


13
Epicuro, deus
dos jardins, é teu
cativo. És o mundo
real que lhe apura
as aparências, o vergel
onde a neblina acosta.

Ouço-o:"olha-se
com pouca atenção a vida
se não se viu o coração
que mata de forma
cuidadosa. Mas é
de lei: é necessário
um resíduo de trevas".

E aí tu passas
e fico cego
às crepitações do ar.